Uma análise concisa sobre a obra de
Deana Barroqueiro
No findar do dia de ontem Deana
Barroqueiro alvorou, “urbi et orbi”, o seu mais recente rebento literário, um romance
histórico com o título de “O corsário
dos sete mares”, cuja narrativa aborda a
aventura que foi a vida de Fernão Mendes Pinto, enquanto peregrino derivante no
Oriente. Momento de ouro da nossa vida cultural, tal evento teve cabimento num
belíssimo monumento – o Padrão dos Descobrimentos – e, como oradores da
sapiência quer da obra quer da Autora, duas personalidades que cuidaram de não
terem deixado os seus créditos em mãos alheias – Marçal Grilo e Miguel Real.
Após leitura nocturna deste seu último
filho literário decidi-me a prestar a minha singela e anónima homenagem à Escritora
em causa, que publicamente consagro como uma das aquilatadas na nossa lusitana ágora
se bem que, no pleno da minha consciência, reconheça que esta minha consagração
não transporta nenhuma mais valia à referida Autora.
A) – Do romance histórico: (1)
Numa breve nótula introdutória sumulo
que é pacífico e encontra-se assente que o género literário “romance”
subdivide-se em diversos subgéneros, tais como ficção científica, policial,
aventuras, amor, biográfico e, também, o histórico, entre outros.
Sendo o romance, na generalidade dos
seus subgéneros, uma narrativa descritiva consoante a aptidão e imaginação do
Autor (2), detendo este o livre arbítrio de decidir o que fazer com as suas
personagens que cria consoante a necessidade de encapotar e encorpar a
narrativa, já o subgénero “histórico” traz algumas limitações ao Autor, pois
este tem que se cingir a determinados eventos históricos que ocorreram numa
determinada época, não podendo escapulir-se dos mesmos.
Assim, se o romance histórico, por um
lado, coarcta parcialmente a liberdade do escritor, ao impor-lhe a
centralização dum determinado facto como núcleo narrativo bem como das
personagens que nele participaram, por outro concede-lhe a benesse de, à volta
desse cerne centralizador, ter autonomia para imaginar quais os caminhos que
levaram ao processamento desses mesmos eventos e traçar o perfil psicológico
das entidades que foram a causa e consequência dos factos narrados.
Tenho pra mim que um romance histórico,
na sua mistura de romance e História, deve ter um equilíbrio bem calculado e calibrado.
É como imaginarmos que numa balança de dois pratos, conseguíamos colocar, num
deles, a dose de romance e no outro a dose de História e ambos se equilibrassem
mais descida menos subida. Quando um dos pratos desta balança imaginária se
desequilibra grandemente, ou porque tem romance ou porque tem História a mais,
para mim deixa de ter direito a ser considerado como tal.
É exigido ao romancista histórico ter o
saber e a sabedoria do que vai escrever. Que tenha, não só, bons conhecimentos
da História dos factos que vai narrar (eis o saber) como também lhe importa a
arte do relato na finura da sua escrita (eis a sabedoria), que pode ser mais ou
menos rendilhada mas nunca dessincronizada da época a que se reporta. Porque,
no meu apetite histórico-romanesco, sacio-me com um romance histórico que, na
cadeia evolutiva das suas características tenha, no topo das mesmas, um
triúnviro composto por ludismo, pedagogia e suavidade (mas sem cair na espuma
dos artificialismos ou na poeira dos exageros) acabando por me fazer (e a
qualquer Leitor) o deleite de levedar os meus/seus conhecimentos numa forma
mais subtil e serena do que se lesse um seco compêndio de História. Suba-se a
suave colina do conhecimento sem ter que se escalar a mesma com brutidão e
brusquidão.
Infelizmente usa-se e abusa-se da
insígnia “ histórico” para classificar romances que não merecem tal distinção.
Livro que aborde um determinado facto histórico, mas ao de leve, estando a
restante paginação cheia de enredos e tramas que acabam por desvirtuar o
verdadeiro conceito deste subgénero, tornando-o aleive lançam o labéu ao
escriba. O termo “histórico” nestes casos é abusador e enganador, não passando
duma pitada de sal que o Autor coloca para dar algum sabor a um conduto que, se
não tivesse tal condimento, tornar-se-ia insípido e desenxabido.
Verdadeiros romances históricos não
abundam no nosso mercado. O que abunda são sucedâneos literários desta área,
que me fazem lembrar, voltando à gastronomia comparativa, os chocolates de
Badajoz em relação aos congéneres suíços, se me é permitia tal comparação
pícara.
B) – Da anterior obra de Deana
Barroqueiro: (3)
Por algumas vezes já me referi
sumariamente à obra de Deana Barroqueiro, fazendo uma análise sucinta dos seus
romances e demonstrando a minha admiração pela sua escrita. Conjugou-se, nesta
Escritora, a sua formação académica superior (que calculo sem equivalências
como contemporaneamente se catapultam e capitalizam cabeças de turco da nossa
(des)governança), a sua longa prática docente onde desenvolveu, entre outras, a
escrita criativa e o ter-se decidido a escrever já no pleno da sua maturação
vivencial, o que lhe trouxe uma mais valia de conhecimentos que derramou no
papel. O rigor que coloca no estudo das abundantes fontes históricas que cuida
de consultar para servirem de base aos seus livros a deslocação, sempre que
possível, aos locais onde os eventos ocorreram e o perfeito casamento da sua
mão com a caneta trazem, à tona dos escaparates, suaves obras lúdicas e
pedagógicas. Por isso a considero uma ilustre descendente de Alexandre
Herculano, mas não cativa das amarras deste.
Quando um Escritor consegue mansamente
matrimoniar o Leitor com o livro onde ele, ao lê-lo, sente-se transportado para
a época narrada no mesmo e vê o desfilar dos acontecimentos como se de um filme
se tratasse ou mergulha no mesmo e participa, qual quinta dimensão, nos factos,
então podemos dizer que o Autor atingiu o seu nirvana e o Leitor a sua
epifania.
A minha relação literária com a Autora
iniciou-se quando li “D. Sebastião e
o Vidente” que aborda o percurso paralelo
do Rei D. Sebastião e do seu súbito Miguel Leitão de Andrada. Numa cavalgada
conturbada em crescendo que, iniciada em trote pelo júbilo do real nascimento,
descambará na louca cavalgada para a morte do Rei e da Pátria nas áridas areias
do cálido deserto alquibirienho onde se abandonaram dez mil guitarras, Deana
Barroqueiro levou-me a percorrer o Portugal da corte lisboeta e também o
Portugal campesino, com todas as suas poucas virtudes e muitos defeitos e
fez-me cavaleiro insano duma insana aventura marroquina. Este livro criou, em
mim, um prazer que não sentia há bastante tempo, por ter descoberto o tal
romance equilibrado nos pratos da balança, pois nele logrei encontrar, na
devida proporção, as doses de História e de romance.
“O
Navegador da Passagem” foi o romance que
de seguida li e onde se aborda a aclaração do feito e da vida do navegador
Bartolomeu Dias, o rasgador das fronteiras oceânicas na África Austral. Desta
vez a Autora tornou-me marinheiro companheiro duma figura grada dos
Descobrimentos que veio a viver desagradado e amargurado por se sentir
injustiçado e despromovido por gentes mesquinhas, descontentamento esse que
findará quando mergulha, em definitivo, nas frias águas do Atlântico Sul que
ele antes ousara arar com os lemes das caravelas que almirantara. Neste romance
fui confidente do homem que dialogou com o Mostrengo e, impotente, fui também
testemunha imaterial do seu triste desenlace. Com este segundo romance lido (e
relido, tal como o primeiro) apurei que a Autora mantinha a sua fasquia alta,
quer na quantidade de elementos pedagógicos fornecidos ao texto, quer no
traçado do perfil psicológico dos personagens, quer no rigor dos factos históricos
nucleares à volta do qual translada o texto romanesco, quer ainda no estilo
literário, poderoso e elegante não sendo tortuoso nem asfixiante. No entanto
notei diferenças evolutivas na construção do texto pois que enquanto o “D.
Sebastião e o vidente” é um romance histórico no sentido clássico do termo, com
uma narrativa linear e enquadrada na sequência cronológica dos factos, em
“O navegador da passagem” a Autora recorre a quebras do tempo, fazendo avanços e
recuos no monólogo mental de Bartolomeu Dias quando, por exemplo, na passagem
do cometa ele inicia a rebobinagem da sua vida labirintizando as suas
recordações pessoais.
Foi, assim, com expectativa implacável e
sob o manto diáfano da crítica adiada, que li o seu terceiro romance “O espião de D.João II”. E foi este livro que me tornou, em definitivo, um “barroqueirómano”.
O livro aborda a lendária busca do Reino do Prestes João, concebida no trono por
D.João II e conseguida no terreno por Pêro da Covilhã, que a consumou numa
inolvidável aventura fabulosa. Conhecedor e apaixonado que sou pela vida e obra
quer de D. João II quer de Pêro da Covilhã, bem como pela História da saga
portuguesa ao longo do litoral da África Oriental, este romance foi o exame que
Deana Barroqueiro, qual pupila prestou (sem o saber) na minha “escola mental”
(e onde recuso equivalências). Sendo uma área que tenho a presunção (e, já
agora, também a água benta) de bem conhecer, em termos de História, li e reli a
obra, na busca de falhas históricas. Espantou-me o profundo conhecimento que a
Autora revelou dos factos, da linguagem, dos trajes, da arquitectura, da
geografia, da gastronomia, do que quer que se possa pensar. Sinceramente, é
incomum encontrar uma obra deste quilate. Era difícil Deana Barroqueiro passar
incólume no meu crivo de conhecimentos (também reconheço que não são assim
tantos como isso), principalmente na deslocação de Pêro da Covilhã ao Sul de
África, na busca dos informes sobre o ouro monomotapiano. Mas… conseguiu. “O
Espião de D.João II” ultrapassou, de
longe, as minhas expectativas sobre a capacidade de Deana Barroqueiro superar
os seus anteriores romances. E fiquei convicto que seria difícil (mas não
impossível, note-se) a Autora subir mais um degrau. Para mim ela tinha atingido
o seu zénite.
C) – “O corsário dos sete mares”
Fernão Mendes Pinto foi um aventureiro
de craveira excepcional que viveu o e no apogeu da saga dos Descobrimentos
Portugueses no então longínquo e misterioso Oriente. Depois de uma vintena de
anos a navegar mares e a palmilhar terras donde o Sol era nado, em que batalhou
sangue e mercadejou lágrimas com muito suor, em que foi proprietário duns e
propriedade doutros, em que foi aventureiro da prata e monge pregador da divina
palavra, flibusteiro feminino e corsário masculino, rasgador de mares muito
pouco por nós navegados e fixador de gentes em terras povoadas por gentes
doutras cores e costumes, retornou ao chão Pátrio e acabou por escrever as suas
memórias no veloz caminhar para o crepúsculo desses dourados tempos, donde
originou o “Peregrinação” postumamente publicado, o qual, no correr
dos séculos, acabaria por se cimentar como um dos grandes ícones referenciais
da aventura pura e dura.
Sendo aparentemente fácil escrever um
romance sobre a sua fascinante vida depressa nos apercebemos que a falsa doçura
do facilitismo vai desaparecendo à medida que a nossa caneta teima em escrever
algo com cabeça tronco e membros, dando lugar à agrura espinhosa de tentar
relatar, com um mínimo de credibilidade a sua jornada, tal é a riqueza de
situações e a multiplicidade de aventuras que ele viveu, com que conviveu e às
quais sobreviveu.
Mesmo para uma Escritora especialista na
narrativa histórica dessa época como o é a Autora, era um desafio difícil.
Pensava eu que o caldo de cultura da sua escrita estava consumado. Melhor que “O espião de D.João II” seria difícil. Mas não. Deana Barroqueiro voltou a surpreender-me
enquanto Leitor.
Dotando a estrutura de “O corsário dos sete mares” numa forma original, capitula sete mares em outras tantas divisões autonomizadas,
iniciando todos eles com adágios dos locais onde se processa a narrativa bem
como intercala pequenos textos coevos alusivos ao que se vai (ou ao que se
está) a desenvolver; mares esses que foram sulcados pelo personagem que dá
corpo e alma ao texto. A escrita, por correcta e apurada, é escorreita,
perfeitamente acessível a qualquer leitor que minimamente se preocupe com a sua
literacia. A narrativa é lídima tornando o texto de abundância substanciosa. A
interacção dos personagens, tal como a interligação dos capítulos, é coesa,
ritmada e aliciante, cuidando de não se tornar alucinante. A obra, apesar de se
encontrar assente na abundância de textos coetâneos que a fidelizam aos factos
históricos em si, é rica e burilada quando tange à criatividade da Autora que,
mais uma vez, recusou-se a baixar a fasquia do seu substrato cultural. Se “O
espião de D.João II” sagrou a Autora como
UMA romancista histórica de craveira
inquestionável, “O corsário dos sete mares” consagrou-a como A romancista histórica, por excelência, sapiência e
competência.
E, assim, sumariamente, eis a minha
opinada sobre um livro cuja leitura foi um puro orgasmo. Por isso recomendo a
aquisição e absorção do mesmo, sob pena de perderem uma das melhores obras
romanceadas que jamais foi escrita sobre este ínclito aventureiro, cujo cada
dia da sua vida foi o píncaro das emoções.
A cada obra que traz a lume, Deana
Barroqueiro tem-se recusado a descer de patamar. Não sei se irá escrever mais algum
romance histórico. Segundo a mesma declarou, na apresentação desta obra,
encerrou o ciclo dos Descobrimentos, estando agora a trabalhar noutro que, pela
descrição que sumarizou, atirarei mais para o romance biográfico. O que sei é
que, a cada novo livro que edita, é mais uma pedra que coloca no seu
consolidado pedestal de escritora consagrada. E um acréscimo de
responsabilidade caso se decida a lançar-se noutra aventura literária.
Resta-me uma pergunta: depois deste
livro com que nos brinda… que se espera para constelar o seu nome num Prémio
Camões ou D. Diniz (4), por exemplo? Por menor obra já vi atribuir a Autores prémios
cujas escritas me levaram a adormecer. Espero que a sua Editora não adormeça
sobre os louros e se lance num lóbi a pugnar por tal.
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Notas:
1) Para quem quiser aprofundar a teoria
do romance histórico, na sua vertente construtiva, aproveite o excelente ensaio
de Rogério Miguel Puga, com o título de “O essencial sobre o Romance Histórico” editado pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
2) Apesar de apenas me referir ao
masculino, no texto quando abordo os vocábulos “Autor”, “Escritor”, ou “Leitor”
reporto-me a ambos os sexos.
3) Não contemplo, neste texto, toda a
obra publicada por Deana Barroqueiro, tendo-me apenas cingido aos seus romances
históricos. Sobre a Autora e a sua obra, pode-se consultar a internet ou o seu
blogue.
(4) Apesar de eu considerar o Prémio
Camões muito polido politicamente (sem desprestígio para os vencedores) e o
Prémio D. Diniz (este, para mim, muito nobre) poder estar em vias de extinção,
segundo notícias recentes. Lamentável se tal vier a suceder.
Declaração de interesse:
As minhas opiniões sobre a Autora,
estacadas no princípio da Liberdade da qual não abro mão baseiam-se, fulcralmente,
na leitura da sua obra ("A l´ouvre on connait l´artisan" – Lafontaine) e nas
palestras que a mesma tem proferido em diversos eventos onde estabelece uma
plataforma dialogante com o público presente. O recente conhecimento mais
personalizado que vim a travar com a Autora mais não fez do que cimentar a
convicção que dela já tinha: a simplicidade do seu estar esconde a grandeza do
seu ser porque é cônscia do limite do que pode almejar a ter.
Fiquei sem fala, Alexandre, e sem capacidade para comentar o seu artigo! Só me restam o espanto e o agradecimento.
ResponderEliminarMagnífico, Alexandre!
ResponderEliminarEu conheci a Deana numa apresentação do livro "O espião de D. João II" que foi o livro que mais me tinha impressionado até ao "O Corsário dos Sete Mares".
Este, todavia, excedeu todas as minhas expectativas (que eram muitas) e consagrou definitivamente os méritos da Autora como grande especialista do romance histórico.
Um abraço
Uma radiografia perfeita sobre os livros da Deana, de quem sou também admirador...e leitor.
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