"O Mundo não é uma herança dos nossos pais, mas um empréstimo que pedimos aos nossos filhos" (Autor desconhecido)

sábado, 29 de setembro de 2012

Mary Kingsley



VIAJANTES, AVENTUREIROS E EXPLORADORES



Mary Kingsley - (Londres, 13/10/1862 - Cabo, 03/06/1900 / Nome completo: Mary Henrietta Kingsley) - Exploradora, escritora, entomologista, bióloga e etnógrafa. Filha dum médico e escritor (George Kingsley) que viajara por África e América do Norte e sobrinha de Henry Kingsley, romancista que se aventurara por terras australianas e de Charles Kingsley, escritor, historiador e professor universitário. Assim, apesar de não ter efectuado muitos estudos escolares, fruto da mentalidade da época vitoriana em que viveu, colmatou esta brecha com o acesso aberto que tinha ao acervo bibliotecário familiar, o que lhe permitiu afeiçoar e aperfeiçoar o seu espírito crítico aos avanços da ciência de então e pintalgar o seu imaginário com as leituras das aventuras dos heróis que a sua Pátria tão fecundamente paria. Foi uma auto-didacta, tendo aprendido a ler e a falar línguas estrangeiras praticamente sozinha. O seu apetite voraz pelo conhecimento levou-a a dominar as áreas da física, da química e das ciências naturais entre outras.

 

Havia dois heróis no sótão cerebral de Mary Kingsley. Um era o lendário Richard Francis Burton, já aqui biografado anteriormente e o outro era o seu pai. Para além da leitura diversificada que tinha em casa, o imaginário de Mary Kingsley ampliava-se com as aventuras do seu pai, nas suas deambulações mundanas, pois o mesmo, como médico pessoal de nobres excêntricos que passavam a vida a viajar, acompanhava-os sempre. O relato das histórias do mesmo empolgava o seu espírito, como por exemplo da vez que escapara à morte, por o seu navio ter sido retido por um temporal e não ter chegado a tempo de acompanhar o General George Armstrong Custer  (1) na sua campanha contra tribos índias e para a qual fora convidado. Escapara da morte por um fio ao não estar presente em Little Big Horn (ver anexos). Sempre que regressava das suas viagens o pai de Mary Kingsley trazia uma quantidade enorme de artesanato das regiões que viajara bem como abundantes anotações etnográficas dos povos que visitara. E era Mary Kingsely quem catalogava, fichava e ordenava todo o material etnográfico e os apontamentos que o seu pai ia trazendo.
 





Mary Kingsley


 
"Passei toda a minha infância e juventude exclusivamente entre a casa e o jardim", diria ela anos mais tarde. A monotonia da sua vida, com um pai sempre ausente, fadada a tomar conta da sua mãe doente e deficiente e tutora pela educação dum irmão mais novo, terminou abruptamente aos trinta anos com a morte dos seus progenitores, ambos num curto intervalo de tempo, no decurso do primeiro trimestre de 1892. A acrescer a este duplo evento, o facto do seu irmão ter decidido partir para a China, no ano seguinte, ainda mais a veio libertar do fardo de ter que continuar a ser a tutora do mesmo. Os astros conjugavam-se para que esta mulher, solteirona e com um rendimento fixo fruto da herança, se lançasse na aventura africana. Estava decidida a dar continuidade à obra iniciada pelo seu pai, que era escrever um livro etnográfico sobre os usos e costumes dos povos que visitara. Para tal iria partir para África para dar seguimento às observações e apontamentos do seu falecido progenitor. "O que me motivou a ir à África Ocidental foi o estudo da mentalidade dos nativos, as suas práticas religiosas e a sua organização social. Desejava completar o grande livro que o meu pai deixou inacabado. Sabendo como ele teria gostado de o concluir, depois da sua morte decidi partir para essa região de África."



Em 1892 embarca, sozinha, numa primeira viagem para o arquipélago das Canárias, como forma de vencer o torpor da perca dos familiares como também para se familiarizar com as viagens. Viaja entre as ilhas, em diversos barcos velhos, embriaga-se com as brisas marinhas e cruza-se com toda uma mescla de animais, mercadorias contrabandeadas e velhos marinheiros que lhe transmitem uma experiência que começa a amadurecê-la. "Navegava em barcos carregados de pretos de todas as idades e sexos, macacos, papagaios, serpentes, canários, ovelhas, óleo de palma, ouro em pó e marfim. ...", como escreverá a uma amiga londrina. A ninfa libertava-se do casulo e a transformação para uma borboleta estava a acontecer a uma velocidade estonteante. Pela primeira vez deixava as nevoentas e húmidas brumas londrinas e descobria, na prática, o que teorizara em leituras de livros durante mais de vinte anos, fechada na biblioteca paterna: sentia na flor da pele outros climas, linguava com outras gentes, palatava outros manjares, experimentava outros costumes, em suma... sentia o Mundo a seus pés. E, acima de tudo, a liberdade de decidir o seu destino.



Retorna à Grã-Bretanha, decidida agora a preparar uma incursão a África. Para tal prepara-se com cuidado metódico. Aconselhada aos perigos tropicais, nomeadamente às doenças e venenos, tira um curso de enfermagem na Faculdade de Medicina de Kaiserworth (Alemanha). Quando volta a embarcar na sua bagagem iam, para além dos xaropes costumeiros, filtros de água, quinino em abundância e óleo de fígado de bacalhau, entre outros unguentos e medicamentos. Para além da parte sanitária levava material fotográfico (tripé, máquinas e chapas), garrafas de formol para conservar insectos ou outros pequenos animais lacustres ou fluviais que capturasse, roupas, cobertores, calçado, um guarda-chuvas e uma faca de mato. Quão longínquas estavam as comodidades ou dos ricos de então ou do actual século XXI.



Em Julho de 1892 apanha o cargueiro "Lagos" que se dirigia a Angola mas, até tocar no mesmo iria percorrer uma infinidade de portos intercalares o que permitiria a Mary Kingsley não só adaptar-se aos novos climas como também conviver e aprender com os comerciantes brancos que viviam nas feitorias costeiras. Desembarca em Freetown, capital serraleonesa e deixa-se capturar docilmente pelo modo de viver tropical. Para uma mulher habituada e adepta da rígida conduta moral vitoriana seria pouco provável que aceitasse o circular entre seres semi-nus, de corpos másculos voluptuosos, mulheres sorridentes e provocantes no meio da sarabanda dos mercados onde se mercadejavam toda uma gama de comidas, temperos, escravos, panos, animais; tudo isto amontilhado em tendas multicoloridas. Na realidade não havia moral vitoriana alguma que resistisse à magia de África. 



Reembarca no cargueiro "Lagos" e visita os portos que este vai tocando na sua jornada marítima para o Sul - Libéria, Costa do Ouro, Benim e Camarões - até que finalmente atinge o seu destino, Angola. Desembarca em Luanda e, nesta colónia portuguesa, irá passar os meses seguintes, percorrendo a mesma. A cidade capital pareceu-lhe "o povoado mais bonito de toda a África Ocidental" pesasse embora o seu negro legado histórico de ter sido um importante ponto de exportação esclavagista. Ruma para Norte, sustentando-se a negociar bens com os povos indígenas com quem se vai cruzando e estabelece-se algum tempo em Cabinda, onde dá início ao seus estudos etnográficos. Percorre o Estado Livre do Congo (2) onde observa a crudelíssimo sistema colonial do Rei Leopoldo da Bélgica, recolhe todos os informes que consegue mas nunca oficializou publicamente as suas observações, que eram violentamente negativas.  Tinha permutado o seu silêncio pela autorização de viajar pela coutada real. No entanto transmitiu-as a um jornalista e político das suas relações pessoais, Edmund Morel, (3) adversário implacável do sistemas coloniais e que, até ao fim dos seus dias, lutou e denunciou panfletariamente estes abusos.




Nove meses após a sua partida chega, em Janeiro de 1894, a Londres. Traz, na bagagem, um acervo de manufacturas africanas e animais formolizados e, na alma, uma paixão acrescida por África. Para concretizar a sua terceira viagem precisava de apoios  e estes são-lhe oferecidos quando entrega o seu acervo zoológico ao Museu de História Natural Britânico e os seus apontamentos, complementares da obra iniciada pelo seu pai à Editora MacMillan. Havia ali um manancial a estudar e a publicar e, quer o Museu quer a Editora, prespectivavam como altamente proveitosas o retorno daquela singela mulher, que teimava continuar vestida espartanamente com longos trajes negros do pescoço aos pés, quentes e espartilhados, quer estivesse na fria e húmida Londres quer na tórrida Freetown. Recusava-se a vestir qualquer outro tipo de roupas: "No que se refere às extremidades da minha anatomia mais próxima da terra e à forma de as proteger, direi que antes de usar calças preferia perecer no patíbulo público". Estranha forma de encarar o vestuário.



Em 23 de Dezembro de 1894 inicia a sua terceira viagem, com destino à Serra Leoa, a bordo do vapor "Batanga". Calha ter por companhia outra passageira, Lady MacDonald, a esposa do então Governador da Nigéria, na costa do Calabar. As duas travar-se-ão de amizades e o estatuto da sua amiga, como esposa dum Governador colonial abri-lhe-á portas, ao escalar Acra, na Costa do Ouro (actual Gana). À chegada ao Calabar teve a sorte do Governador, conjuge da sua amiga, ter que ir tratar de assuntos na ilha Fernando Pó (4), pelo que Mary Kingsley acaba convidada a acompanhar o casal nesta viagem.  Aí tem oportunidade de verificar as miseráveis condições a que os nativos estavam submetidos ao poder descricionário dos missionários. As fotografias que então tirou acabariam por fazer furor mais tarde em Londres, ao exibi-las para consubstanciar as suas teses em defesa dos povos africanos.


Fica os quatro meses seguintes na costa do Calabar, como convidada do casal Macdonald, que aproveita para colher, guardar e catalogar espécimes piscícolas, larvares e insectos nos lagos, rios e bosques da região. Havia que não descurar com os compromissos havidos para com o Museu de História Natural londrino. Nesse espaço de tempo, a sua formação de enfermeira vem ao de cima e é posta à prova, quando arregaça as mangas e colabora no hospital local, onde ajuda a tratar dos doentes fruto dum surto de tifo que se desencadeia na colónia.



Debelado o susto do surto tifóide, resolve peregrinar para o interior do continente e visitar Mary Slessor (5), a Rainha do Calabar, em Okoyong, que tanto ouvira falar e admirava. Sózinha e destemida, inicia a viagem de canoa subindo o rio Calabar e, depois, prossegue a pé, abrindo carreiros de passagem a golpes de catana. Finalmente atinge Ekenge, onde a missionária trabalhava e que a recebe de braços abertos. Com ela Mary Kingsley trava uma verdadeira amizade e admiração pela sua obra. Crítica que era e sempre foi da actividade dos missionários, abriu uma excepção a esta indómita mulher, por a mesma respeitar os hábitos e costumes dos povos africanos, não tentando modificá-los pela força ou pelo medo. Mary Slessor foi, praticamente, a excepção que Mary Kingsley abriu na sua campanha contra os missionários. A prestimosa ajuda que a missionária lhe prestou, nos relatos dos modos de vida dos povos com quem vivia, foram uma preciosa fonte de informação que em muito contribuíram para os seus livros. Que ela, agradecida, nunca esqueceu pela vida fora, tendo sempre dito que os tempos que passara em Ekenge tinham sido dos mais felizes da sua vida.



Deixando para trás Ekenge, porque a vida não parava, não mais voltará a ver a sua incondicional amiga missionária. Havia que satisfazer os compromissos com o Museu londrino e, assim, percorre a costa do Malabar, na recolha de espécimes e explora o delta do Níger, passeia-se por pântanos mosquitados e malarientos e rios crocodilados e trava-se de razões com um hipopótamo na disputa territorial dum naco fluvial. Ganha o combate ao afugentar o animal que terá ficado espantado com aberturas e fechos consecutivos da sua sombrinha.  E sempre, sempre vestida com as suas longas e quentes saias a caírem-lhe aos pés e as camisas fechadas até ao pescoço. Em termos de moda ... parara no tempo.



Ruma até ao actual Gabão, instala-se em Libreville (6) e explora o rio Ougooé (7) e dirige os seus passos para junto do povo fang, por estes terem muito pouco contacto com europeus e, assim, ainda não estarem contaminados, mantendo ainda resquícios da sua natureza ancestral. E a fama de serem canibais não a assustou. A fim de se auto-financiar mercadeja e, assim, torna-se agente comercial da firma Hetton & Cooksoon, cujos tentáculos se espalhavam por toda a bacia hidrográfica do rio Ougooé e também feitorava por este rio acima, em várias localidades. A 05 de Junho de 1895 ruma rio acima, acabando por vencer os 200 quilómetros que a separam de Lambarané. A viagem fluvial é uma caminhada no Paraíso, ao ver a paisagem luxuriante duma África ainda pujante: "O bosque negro e as colinas perfilam-se contra o  céu estrelado cor de púrpura. Aos meus pés vejo a escotilha da sala das máquinas, iluminada pelo fulgor avermelhado da caldeira. Dois kruman semi-nus alimentam o fogo com madeiros vermelhos como pedaços de carne fresca. As chamas fazem brilhar os seus corpos suados como bronze polido", pintalgará ela magistralmente em escrita no papel, posteriormente numa cinzenta londrina, num famoso livro que sairá a lume. Apaixonara-se loucamente pelo labiríntico capilar dos afluentes e riachos que, enquadrados pelo verde vegetal das florestas galerias, a levavam aos infindáveis e ubérrimos pântanos e mangais que aninhavam toda uma vastíssima variedade de exemplares zoológicos, que ia colhendo e guardando em frascos de formol para posterior entrega ao Museu Britânico. "Às vezes creio que não pertenço ao mundo dos humanos, a minha gente são os mangais, os pântanos, os rios, os húmidos bosques tropicais, com eles entendo-me na perfeição..." Recordará ela mais tarde, carregada de nostalgia, enquanto pela sua mente passava o filme da sua vida ao ver-se a circular em emaranhados  bosques de bambu e a desembarcar em pequenas insulas fluviais.



Atinge Lambarané, que é um povoado nas margens do rio Ougooé onde se situava o famoso hospital do lendário médico missionário Albertt Schweitezer (8). Daí segue rio acima até atingir o povoado Kangué, onde se alberga em casa dum casal de missionários, os Jacot. Aqui cruza-se com os fang e, em representação da firma que a nomeara agente comercial, começa a sua actividade mercantil com os mesmos. Conduz sózinha e com mestria a sua piroga, domina a pouco e pouco o linguar desse povo e visita-o nas suas diversas aldeias. Não receia nada e o facto de circular sozinha pelo emaranhado fluvial e pernoitar nos povoados fangs ainda mais a fascina. Como dirá: "O método do comércio permite-nos sentar como um hóspede respeitado nas fogueiras das aldeias mais remotas, ser amiga e confidente das mulheres. Permite que nos associemos ao clube dos doutores bruxos, coisa que não aconteceria se chegássemos numa expedição rodeada de homens armados." Permuta anzóis, rum e tecidos  por marfim, comida e peixes para futuros estudos científicos.



Não receia o canibalismo deste povo, que reconhece que pratica e, ironiza, ao escrever: "O canibalismo dos fang, apesar de ser um hábito frequente, não me parece que represente um perigo para os brancos. A única maçada consiste em tratar de impedir que algum dos nossos acompanhantes pretos seja comido."  Respeita-os e não interfere com a sua cultura, um dos segredos para a sua plena aceitação nas aldeias. Não receia o seu aspecto aterrador e selvático, desnudados e sempre armados. Respeita-os acima de todos os outros povos que conheceu, reconhecendo-lhes nobreza: "São africanos activos, brilhantes e enérgicos que, pela sua natureza belicosa e predadora, contribuem em grande medida para que deixemos de lamentar e deplorar a indolência e a letargia das restantes tribos da costa atlântica." Deixa os povoados fang e inicia a sua lenta viagem de retorno à civilização europeia. Ainda vai até ao estuário do rio Muni, que serve de fronteira natural entre o Gabão da Guiné Equatorial onde se acoita na ilha Corisco (9) para recolha de amostras crustáceas.



Mas a sua lendária ousadia não terminará aqui. Desloca-se à então colónia alemã dos Camarões e, seguindo as pisadas do seu ídolo Richard Francis Burton, escala o Mungo Mah Lobeh (10) até ao seu cume. Foi a primeira e única vez que praticou montanhismo. Para uma inexperiente, que ainda por cima escalou-o por um caminho que nunca ninguém antes alguém efectuara, foi um feito inédito. Mary Kingsley, ao vencer os 4095 metros que separam a base do cume, tornara-se na primeira mulher europeia a escalar um monte africano. Aí, teve o Mundo a seus pés.




Retorna à Mãe-Pátria em finais de 1895 e já então é uma mulher célebre. A imprensa espera-a e ela aproveita essa visibilidade para sair a terreiro em defesa das culturas africanas e criticar a actividade de muitos missionários que, à força, destruíam as crenças nativas e alteravam os seus ancestrais modos de vida. Percorre o País onde dá inúmeras conferências e palestras, mas distancia-se dos  movimentos femeninistas, que tentavam fazê-la uma das arautas, fruto da sua independência vivencial. Escreve e publica dois livros sobre a sua experiência africana:"Travels in West Africa") ("Viagens na África Ocidental") em 1897 e "West African Studies" ("Estudos da África Ocidental") (1899), que se tornam em êxitos de vendas e que lhe trazem mais nomeada junto dos meios académicos.





As viagens exploratórias de Mary Kingsley




A recolha entomológoca e piscícola que efectuara nesta sua segunda ida a África é recebida avidamente pelo Museu de História Natural. Na catalogação dos animais vêm a detectar bastantes desconhecidos para a época, que vão baptizando, alguns como Kingsley em homenagem à exploradora. A sua celebridade é enorme, e aproveita a mesma para escrever inúmeros artigos nos jornais e bater-se por causas humanitárias.



Mas o apelo a África era enorme e sente desejos de voltar, conforme escreverá: "Não consigo esquecer o encanto da África ocidental que deixei para trás. É maravilhoso deixarmo-nos envolver pela sua magia quando estamos lá..... Nessa altura queremos voltar à costa africana que nos chama, dizendo o que os nativos dizem às almas dos seus amigos que morrem: volta, esta é a tua casa...".



Quando se desencadeia, na África Meridional, o segundo conflito anglo-bóer (11) voluntaria-se para lá, como enfermeira se bem que, inicialmente, dissesse que ia como correspondente de guerra e recolha de espécimes no rio Orange. Em 28 de Março de 1900 aportava à cidade do Cabo, depois duma dura viagem marítima  a bordo do "Moor", onde partilhou o espaço com mais de seis centenas de soldados. Colocada no "Palace Hospital", o pior dos piores hospitais daquele tempo de guerra, desceu aos infernos quando viu que o referido hospital não passava dum edifício semi-arruinado, com o tecto em risco de desabamento e onde os corpos dos doentes espalhavam-se pelo chão, de tantos que eram, fazendo companhia aos percevejos. "Nunca estive num lugar tão horrível como neste vale da morte e desolação a que chamam Hospital Palácio." escreverá, desolada e desanimada, numa carta para uma amiga londrina.



A falta de condições de higiene, o aspecto zombie dos doentes, o ar pútrido, a prisão em que sentia naquelas paredes sujas, com a Morte empunhando a sua gadanha a colher diariamente a sua colecta, atiraram-na para a depressão. Começa a ingerir doses excessivas de bebidas alcoólicas desaustinadamente e a fumar desatinadamente, fórmula auto-justificativa de se proteger dos germes infecciosos hospitalares. O desnorte apodera-se desta mulher combativa, que ao vício se abandona, desintegrando toda a sua postura de mulher calma e fria. O que canibais e crocodilos, aranhas venenosas e mosquitos malarientos não tinham conseguido, tinha sido agora aquela visão dantesca de cadáveres amontoados, cheiros nauseabundos e gritos de desespero do sentimento de impotência  que a tinham alquebrado.



Dois meses após a sua chegada, é atingida pela febre tifóide e, cônscia que vai morrer se não tomar providências, trava o último combate da sua vida. Operada aos intestinos a 01 de Junho de 1900, o coração bloqueia e baqueia dois dias depois. Morre jovem, com trinta e oito anos, quando ainda poderia dar muito à aventura e à ciência. A seu pedido o seu corpo foi lançado no mar meridional. Contra sua vontade teve honras militares.


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Trinta anos enclausurada em casa sem nenhum devaneio, sem nenhuma história, sem nenhuma emoção. Mas os oito seguintes foram intensamente vividos. Foi uma mulher fabulosa e corajosa, que amou a África verdadeiramente africana e não a África que estavam a moldar. Seguiu as pisadas dos seus heróis e, tal como eles, partilhou os perigos da mítica África desconhecida.



Viajou pela lusa Angola, com uma Luanda bonita mas ainda carregada dos suores  e onde ainda ecoavam os gritos de incontáveis escravos exportados para os "brasis" e ainda foi das que viu os horrores do Estado Livre do Congo leopoldino. Tal como o seu ídolo Richard Francis Burton, palmilhou os trilhos calabarenhos e gaboneses e escalou o "Trono dos Deuses", trinta anos depois dele; atingiu os fang canibais e conviveu com os mesmos. Foi sozinha e sozinha regressou para contar a história. Intacta e inteira. Ainda conviveu com outra lenda africana, Mary Slessor. Ainda viu e sentiu o cheiro dos gorilas., disputou terreno a leões e águas a crocodilos E, ao regressar a solo pátrio, não deturpou a história do que viu, sentiu e ouviu no seu convívio com  as gentes africanas. Defendeu as culturas dos povos africanos, criticando àsperamente os missionários seus conterrâneos e não só, que injectavam à força a civilização europeia nos povos e acusando-os de racismo. Pagou, por vezes, caro essa ousadia, tendo sido levada ao ostracismo em determinados sectores conservadores da opinião pública, instrumentalizada por uma imprensa docilizada e ao serviço dos interesses imperiais políticos, económios e religiosos do seu País que estava a construir o maior Império dos tempos modernos. Mas nunca cedeu. 


 
Voluntariamente conviveu, dia a dia, com a  morte ao oferecer-se para prestar enfermagem quer aos enfermos tifóides do Calabar na África Equatorial quer aos feridos da guerra anglo-bóer na África Meridional. Esse voluntarismo atingiu-a em cheio e a factura apresentada foi pesada. Mas não virou a cara.
 
 
De certeza que, ao morrer, das últimas imagens que lhe passaram pela mente foram os gorilas a passearem-se paulatinamente nas verdes colinas da sua África amada. 



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(1) - George Armstong Custer - (Ohio, 05/12/1939 - Montana, 25/06/1876). Tornou-se no mais jovem militar norte-americano a ganhar as estrelas de generalato ao ser promovido, interinamente, ao posto de Brigadeiro, ao serviço das forças da União, no decurso da Guerra da Secessão (1861/1865). Após o findar do conflito civil estadunidense, retoma a sua patente de Capitão e, no ano seguinte é incorporado no Sétimo Regimento de Cavalaria, do qual assume o comando como Tenente-Coronel. Participa activamente nas guerras da destruição dos povos índios, como forma de facilitar a expansão dos europeus para Oeste. 
 
 
 
 
 George A. Custer
 
 
 
Impulsivo, corajoso e imprudente, a sua juventude leva-o a cada vez ser mais ousado na perseguição e destruição da Nação Índia, que haveria de lhe trazer a fama que adorava e o poder que ambicionava. No dia 25/06/1876 leva o seu Regimento de 600 homens a atacar uma aldeia índia, atraído por uma armadilha que os índios lhe montaram. Caindo no meio duma emboscada, na chamada "caixa de morte" (A), George Custer  e quase todo o Sétimo de Cavalaria pagaram caro a ousadia, não tendo ficado ninguém para constar a História, excepto uns quantos que desertaram antes da batalha, que ficou conhecida como Little Big Horn. Foi a maior derrota militar da história do Exército, no seu combate contra os povos índios. Neste combate os índios, entre os vários líderes, contavam com os famosos Sitting Bull (B), Crazy Horse (C) e Two Moon.
 

 
O facto dum Regimento do Exército norte-americano inteiro ter sido chacinado numa luta contra os índios, com a morte do seu próprio Comandante que, já então, era muito popular no seio da comunidade branca, ainda mais acirrou os ódios contra os índios e a sentença de morte das suas culturas e tradições, se já estava em marcha, ainda mais foi acelerada.
 

 
Assim, se Little Big Horn representou, a curto prazo, a morte física de George Custer e do seu Regimento, também representou, a médio prazo, o canto do cisne da Nação Índia. Canto este que findaria em 29/12/1890 quando cerca de 400 índios sioux, de ambos os sexos e de diversos grupos etários, foram chacinados no combate desigual de Wounded Knee (Dakota Sul). Terminava aqui, oficialmente, a chacina índia.


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A) - Caixa de morte - Terminologia usada por sectores militares que significa que uma determinada formação militar (secção, pelotão, companhia, regimento, batalhão) entrou num vale, por exemplo, ficando à mercê do fogo inimigo que, alcandorado sobre pontos mais altos, está mais bem posicionado para o flagelar. Para além da Little Big Horn, outro exemplo duma batalha famosa que também ficou conhecida por se ter travado numa "caixa de morte" foi a de Dien Bien Phu, no Vietnam do Norte, travada entre 13/03 e 07/05 de 1954 e onde forças francesas foram completamente derrotadas por forças nacionalistas, após 57 dias de combate.





Representação pictórica da batalha de Litle Big Horn.
Como se vê a área de combate encontra-se rodeada de montanhas/colinas.


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Lançamento de pára-quedistas franceses durante os combates no
planalto de Dien Bien Phu. Como se pode reparar, o local encontra-se
rodeado de colinas, tornando o mesmo numa "caixa de morte".


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B) - Sitting Bull (Tatanka Iyotake) - (1834 - 15/12/1890) - Liderou uma facção sioux. Comandou superiormente as forças índias (dakotas e cheyennes) na batalha de Little Big Horn. Perseguido refugia-se com os seus homens no Canadá, donde acaba por retornar em 1831. Integra depois o espectáculo do empresário circense Bufallo Bill.
 
 
 
 
 
Sitting Bull
 
 
 
 
Virá a morrer baleado por forças americanas quando tentou opor-se à prisão do feiticeiro paíute Wovoca, líder espiritual índio que profetizava a "dança fantasma", cuja mística prometia uma terra sem brancos e em que os índios mortos voltariam a renascer.
 
 

C) - Crazy Horse - (1840 - 05/09/1877) - Guerreiro lakota e um dos líderes da batalha de Little Big Horn. Antes deste combate liderou guerreiros índios contra a penetração europeia nas suas terras e combateu incansavelmente o Exército norte-americano.


 
 
Desenho do rosto de Crazy Horse,
segundo informações prestadas pela sua irmã



Em 21 de Dezembro de 1866 comandando os lakotas, participa no combate de Fettermen, no Wyoming, onde forças índias lakotas, oglalas e cheyennes liquidam todos os 80 militares duma companhia estadunidense, comandada pelo Capitão William Fettermen. A 02 de Agosto do ano seguinte participa no combate de Wagon Box, sensivelmente na mesma área onde travara o combate no ano anterior, com resultados negativos para as forças índias e, em 17 de Junho de 1876, encontra-se novamente a combater o Exército na batalha de Rosebud Creek, no Montana. Nesse mesmo mês trava a grande batalha da sua vida, em Little Big Horn, no qual foi um dos líderes que comandou directamente e no terreno os seus homens.
 
 
Este indómito e incansável guerreiro aparece depois a liderar forças índias no combate de Buttes Slim, no Dakota Sul a 10 de Setembro de 1876, numa desesperada tentativa de resgatar o seu chefe tribal, Old American Horse, mas acaba derrotado e o seu líder tribal morto. Em fuga, a 08 de Janeiro de 1877 e na região de Montana, Crazy Horse trava a sua última batalha contra as forças norte-americanas, no combate de Wolf Mountain, sendo obrigado a retirar-se, derrotado.

 
A 05 de Maio desse mesmo a o rende-se às forças americanas. A doença, a fome e o rigor invernal levaram-no a tomar essa opção desesperada, para evitar mais sofrimento ao seu povo. A sua vida como prisioneiro foi atribulada e acabou assassinado à baioneta por um soldado norte-americano, numa morte que nunca foi bem explicada e que ainda hoje gera controvérsia.

 
Crazy Horse tornou-se, com o rolar dos anos, num ícone da cultura norte-americana e ainda hoje a história da sua vida de caçador, guerreiro e líder tribal é admirada por muitos norte-americanos. 

 
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(2) - Estado Livre do Congo - Correspondendo geográficamente à actual República Democrática do Congo (ex-Congo belga) esta imensa área centro-africana foi criada por vontade férrea do Rei Leopoldo II da Bélgica que, para tal, encarregou o explorador e aventureiro Henry Morton Stanley (A) de concretizar no terreno a sua vontade.





Bandeira do Estado Livre do Congo,
do Rei Leopoldo II



O Rei Leopoldo II era um monarca constitucional dum pequeno País cuja política não oferecia perigo aos seus pares europeus. Mas a sua ambição pessoal era maior que o seu País e este homem, duro, arrogante e amoral sonhava com a grandeza histórica. Tentara alugar territórios noutros continentes mas os seus esforços tinham sido infrutíferos. Quando Henry Morton Stanley desvendeu um dos últimos segredos milenares africanos - o curso do rio Congo - e descreveu as fabulosas riquezas à espera de quem as colhesse Leopoldo II, sagaz e rápido, convocou a Conferência Internacional de Bruxelas (B), sob a égide da sua Associação Internacional Africana, uma organização que, sob a capa do humanitarismo, apenas servia de ponta de lança aos interesses secretos e obscuros do monarca. De seguida contratou Henry Morton Stalley para superintender os trabalhos que acabassem por criar um Estado em África, com todas as infra-estruturas necessárias à sua exploração, que começavam pela construção duma linha férrea e de fortes militares que cortasse o coração de África até ao Oceano Atlântico, para trazer todas as riquezas minerais do território.



Os meios empregues para recrutamento de pessoal e exploração das riquezas foram violentamente desumanos para atingirem os fins, que eram a criação da fabulosa riqueza pessoal do monarca belga. A base das violações, sequestros familiares, amputação de membros, torturas e fomentação de guerras tribais, o conluio com os negreiros zanzibaritas, os programas de fome colectiva que levavam ao recrudescimento do canibalismo, tudo serviu para manter docilizados os escravos arrebanhados à força nas aldeias interiores.



Para não nos alongarmos em demasia, pois este será um tema a abordar mais tarde, o Estado Livre do Congo (C) não passou dum coutada privada do Rei, que a explorou desenfreadamente entre 1885 e 1908 após o que, a 15 de Novembro desse ano, face aos clamores internacionais, o território passou para as mãos do Governo belga, depois de ter sido anexado pelo Parlamento, que manteve o estuto colonial até à independência política deste território. 


(A) Já biografado anteriormente.

(B) Descrita na mensagem de hoje, na História de Moçambique Colonial.

(C) Sobre este tema já abordei anteriormente o excepcional livro "O fantasma do Rei Leopoldo" da autoria de Adam Hochschild bem como o "Coração das trevas" de Joseph Conrad.


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(3) Edmund Dene Morel (1873-1924) foi um jornalista e político britânico, de orientação socialista, que toda a sua vida combateu abertamente as violações dos direitos humanos. Juntamente com outros políticos e associações denunciou as arbitrariedades desumanas do Estado Livre do Congo, tendo-se tornado numa das "bestas malditas" do Rei Leopoldo II. Amigo pessoal de Mary Kingsley, ela terá sido um importante canal de informações que lhe permitiram manter as hostilidades contra a actividade desumanitária do monarca belga. É o exemplo dum dos injustiçados da História, pois o exemplo da sua vida de combatente pelos Direitos Humanos, o seu pacifismo e o seu percurso político hoje estão bastante esquecidos. 



(4) A ilha Fernão Pó, localizada no Golfo da Guiné, chama-se actualmente Bioko e pertence à actual República da Guiné Equatorial. Terá sido descoberta em 1472 pelo navegador português com este nome que, nessa mesma viagem integrada na saga dos Descobrimentos Portugueses, também terá descoberto e explorado a foz do rio Wori, na actual República dos Camarões. Posteriormente, em 1778, esta ilha e a parte continental que engloba a actual República, foi entregue pela Coroa Portuguesa à sua congénere espanhola, por permuta de territórios na América do Sul que acabaram por integrar o espaço do Brasil, sendo esta a razão do Reino de Espanha ter tido uma (e única) colónia na África sub-sahariana. Esta ilha delimita, aquaticamente, a fronteira com a República dos Camarões.


(5) - Sobre Mary Slessor já foi aberta ficha anteriormente.


(6) - Libreville, a actual capital gabonesa foi fundada em meados do século XIX por escravos libertos. Serviu de rampa de lançamento para a penetração colonial francesa, pelo que foi, no século XIX, capital do experimental Congo Francês, até perder esse estatuto para Brazzaville.


(7) O rio Ougooé é a principal estrada fluvial da actual República do Gabão. Com cerca de 1.200 quilómetros de extensão, nasce no Congo e é o principal rio que se localiza, geograficamente, entre os seus congéneres Congo e Níger.


(8) Sobre a vida do missionário Albert Schweitzer já foi efectuada uma ficha anteriormente.


(9) A ilha de Corisco (também apelidada gentilicamente de Manj) é uma pequena ilha com cerca de 15 quilómetros quadrados de superfície e situa-se a cerca de uma trintena de quilómetros do estuário do Muni. Pertence, no actual contexto geo-politico, à República da Guiné-Equatorial, tendo sido descoberta pelos portugueses, por volta de 1472. O seu nome Corisco significa "raio de luz". Corisco é uma palavra muito utilizada na actual Região Autónoma dos Açores.


(10) - O monte Mungo Mah Lobeh, conhecido no século XIX pelos colonos pelo nome de "Carro dos Deuses" ou "Trono dos Deuses" é o actual Monte Camarões. Tem 4.095 metros de altitude, sendo um vulcão activo e localiza-se na zona costeira do país e a  cerca de 250 quilómetros da capital camaronesa. Joseph Merrick, em 1840 e Richard Francis Burton, em 1861 escalaram-no.
 


(11) - A Segunda Guerra Anglo-Bóer, tal como  Primeira, será analisada quando, terminada a História de Moçambique Colonial, eu começar com a História da África Austral, que englobará a história de todos os países daquela parte meridional de África no período que mediará entre 1500 e 2000.



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LIVROS


Mary Kingsley escreveu dois livros, quando retornou a Londres vinda da sua segunda viagem africana. O primeiro foi "Travels in West Africa", publicado em 1897 e onde relata, pitorescamente, as suas aventuras africanas, abordando assuntos etnográficos, aventureiros, tudo em fino recorte de humor. A ironia era um dos seus fortes. A parte mais interessante deste livro será o facto da narradora defender os povos africanos como pessoas iguais aos europeus, afastando tendências de paternalismos. Aceitava, com naturalidade, a poligamia, o canibalismos e a feitiçaria, como fazendo parte de culturas africanas que eram diferentes das europeias. Equiparava-as, não sobrepondo umas em relação às outras. 
 
 
O segundo foi "West African Studies" publicado em 1899 que, mais em jeito de ensaio, tornou-se polémico por causa dos seus pontos de vista ousados sobre como, por exemplo, as colónias deviam ser governadas com administrações que englobassem colonos europeus e chefaturas nativas. Reza a história e os "mentideros" da época que foi por causa destas teses que Mary Kingsley perdeu o grande amor da sua vida, o engenheiro Matthew Nattan (1), futuro Governador do Calabar, seu ardente apaixonado mas que, ao tomar conhecimento destas teses políticas da sua amada, desapareceu de vez da circulação do seu coração, optando por uma carreira colonial mais proveitosa.

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Existem múltiplas edições da obra de Mary Kingsley em língua inglesa. Não conheço nenhuma edição portuguesa dos seus livros, tendo lido o "Travels in Africa" (by Mary H.Kingsley), da Echo Library, 2008, Middlesex  (ISBN 978-1-40687-650-5).
 
 
Os interessados na obra literária desta mulher poderão também ler o "West African Studies" consultando: "http:www.gutemberg.org/files/38870/38870-h/38870-h.htm".
 
 
Bendita internet.
 


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(1) Matthews Nattan - (1862/1939) - Tendo efectuado os seus estudos na Real Academia Militar formou-se na Escola de Engenharia Militar, em 1884. Nesse mesmo ano integra a expedição militar ao Sudão, onde permanece dois anos e entre 1889/1894 presta serviço militar na Índia. Em 1899 é nomeado Governador interino da Serra Leoa e, no ano seguinte, ascende a Governador da Costa do Ouro, cargo em que se mantém durante os três anos seguintes. Foi ainda Governador de Hong Kong (China) e do Natal (União sul-Africana), após o que seguiu uma carreira política londrina e irlandesa.


Nota: Apesar das leituras efectuadas, a transcrição das citações de Mary Kingsley e a base do meu texto foram colhidas do excelente livro "Memórias de África" de Cristina Morató, livro este já por mim referido anteriormente.


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HISTORIANDO MOÇAMBIQUE COLONIAL









British Central Africa - Companhia majestática (1)inglesa que, aproveitando a livre circulação dos rios Zambeze e Chire, imposta pela Grã-Bretanha a Portugal pelo tratado de Windsor de 189l, após o Ultimato (2), instalou uma concessão no Chinde, para exploração do seu porto e navegação fluvial. Essa concessão, que ficou conhecida por “concessão inglesa”, foi cedida em 20 de Agosto de 1891, dando os britânicos, em troca, uma área de igual superfície na Baía dos Leopardos, na região do Niassa.


British South Africa Company (BSAC) Era a companhia majestática, criada por Cecil Rhodes(2), a partir duma outra - a Chartered - e que recebeu alvará da Rainha de Inglaterra em 25 de Outubro de 1889. Munido da autorização real para explorar e colonizar uma vastíssima área que era, muito vagamente, definida entre o norte da Bechuanalândia (2) e o Niassa, Cecil Rhodes levará a sua empresa a expandir-se por territórios desconhecidos dos brancos. A British South Africa Company, guarda avançada do capitalismo britânico e com alvará por 25 anos irá, posteriormente e na sequência do desmantelamento da mesma, dar origem às Rodésias do Norte e do Sul e ao Niassalândia (actuais Repúblicas da Zâmbia, do Zimbabué e do Malawi, respectivamente).

 

Conferência de Bruxelas - As viagens de Henry Stanley (1) e de David Livingstone (1) pelo continente africano despertaram, nos políticos europeus, a cobiça pelas matérias primas deste continente. Em 1876, o Rei Leopoldo II da Bélgica, sob a capa da ciência, da religião e do combate ao esclavagismo promove, em Bruxelas, uma reunião internacional, com o fim de se discutirem vários problemas sobre África. Estiveram presentes, para além da Bélgica, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, a Aústria-Hungria e a Rússia, tendo Portugal sido excluído. Estudou-se a forma de penetração em África, e fundou-se o Estado Livre do Congo, sob tutela pessoal do Rei belga. Transcreve-se, parcialmente, a acta final da conferência: “Em nome de Deus Todo-Poderoso (...): Animados, por igual, da firme vontade de pôr um termo aos crimes e devastações que engendra o tráfico de escravos africanos, de proteger eficazmente as populações aborígenes da África e assegurar a esse vasto continente os benefícios da paz e da civilização; Desejando renovar a sanção às decisões já tomadas no mesmo sentido e em várias ocasiões pelas potências, complementar os resultados que elas obtiveram e baixar um conjunto de medidas que garantam o aperfeiçoamento da obra que é objecto de sua comum solicitude; Resolveram, em resposta ao convite que lhes sugeriu o Governo de Sua Majestade o Rei dos Belgas, de acordo com o Governo de Sua majestade a Rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, Imperatriz das Índias, reunir com esse objectivo uma Conferência em Bruxelas e nomearam como seus Plenipotenciários (...); Os quais, munidos de plenos poderes, reconhecidos em boa e devida forma adoptaram as seguintes disposições: CAPÍTULO I: Países de Tráfico – Medidas a Tomar nos Lugares de Origem: Artigo 1º - As Potências declaram que os meios mais eficazes para combater o tráfico no interior de África são os seguintes: a) – Organização progressiva dos serviços administrativos, judiciários, religiosos e militares nos territórios de África postos sob a soberania ou protectorado das nações civilizadas; b) – Estabelecimento gradual, no interior, pelas Potências das quais dependem os territórios, de estações fortemente ocupadas, de modo que a sua acção protectora ou repressiva possa fazer-se sentir com eficácia nos territórios devastados pela caça ao homem; c) – Construção de estradas, nomeadamente vias-férreas, ligando essas estações avançadas à costa e permitindo o acesso fácil às águas interiores e ao curso superior dos rios e riachos que seriam cortados por corredeiras e cataratas, a fim de substituir o actual transporte por carregadores, por meio de transportes rápidos e económicos; d) – Instalação de barcos a vapor nas águas inferiores navegáveis e nos lagos, com o apoio de postos fortificados, estabelecidos nas margens; e) – Estabelecimento de linhas telegráficas que assegurem a comunicação dos postos e estações com a costa e os centros administrativos; f) – Organização de expedições e colunas móveis, que mantenham as comunicações das estações entre si e com a costa, apoiem a acção repressiva e garantam a segurança das vias de percurso; g) – Restrição de importação de armas de fogo, pelo menos das armas aperfeiçoadas, e das munições, em toda a extensão dos territórios atingidos pelo tráfico. Artigo 2º - As estações, as expedições de vigilância interior, organizadas por cada uma das Potências em suas águas, e os postos que lhe servem de porto de matrícula, independente da sua missão principal, que será a de impedir a captura de escravos e de interceptar as vias de tráfico, terão por encargo subsidiário: a) – Servir de ponto de apoio e de refúgio às populações indígenas colocadas sob a soberania ou protectorado do Estado do qual depende a estação, às populações independentes, bem como, temporariamente, a todas as outras em caso de perigo iminente, por as populações da primeira dessas categorias em condições de contribuir para a sua própria defesa; diminuir as guerras intestinais entre tribos por meio de arbitragem; instrui-las nos trabalhos agrícolas e nas artes profissionais, de modo a aumentar o seu bem-estar, conduzi-las à civilização e levar à extinção dos costumes bárbaros, tais como o canibalismo e os sacrifícios humanos; b) – Oferecer ajuda e protecção às empresas comerciais, fiscalizar a legalidade dos actos, notadamente pelo controlo dos contratos de trabalho com os indígenas, propagar a fundação de centros de cultura permanentes e de estabelecimentos comerciais; c) – Proteger, sem distinção de culto, as missões já estabelecidas ou que venham a estabelecer; d) – Prover ao serviço sanitário e dar hospitalidade e socorro aos exploradores e a todos aqueles que participam, na África, da obra de repressão ao tráfico. Artigo 3º - As Potências que exerçam uma soberania ou um Protectorado na África, confirmando e precisando das sua declarações anteriores, obrigam-se a dar continuidade, gradualmente, conforme as circunstâncias o permitam, sejam pelos meios acima indicados, seja por todos os outros meios que lhe pareçam convenientes, a repressão do tráfico, cada uma em suas possessões respectivas e sob sua direcção própria. Todas as vezes que julgarem possível, elas prestarão os seus bons ofícios às Potências que, num intuito puramente humanitário, realizarem em África uma missão análoga. (...) Artigo 5º - As Potências contratantes obrigam-se, salvo disposições legislativas anteriores, conformes ao espírito do presente artigo, a editar ou propor aos seus legisladores o mais tardar no prazo de um ano a contar da data da assinatura do presente Acto Geral, uma lei tornando aplicável, de um lado, as disposições da sua legislação penal sobre atentados graves às pessoas, contra os organizadores e cooperadores da caça ao homem, os autores da mutilação de adultos e crianças do sexo masculino, bem como contra todos os indivíduos que participem na captura violenta de escravos e, por outro lado, as disposições concernentes aos atentados à liberdade individual, contra os comboieiros, transportadores e mercadores de escravos. Os co-autores e cúmplices das diversas categorias, acima especificadas, de captores e traficantes de escravos serão punidos com penas proporcionais às aplicáveis aos autores. Os culpados, que se subtraírem à jurisdição das autoridades do País em que os crimes ou delitos tenham sido cometidos, serão detidos, seja mediante comunicação das peças da instrução criminal por parte das autoridades que verifiquem essas infracções, seja mediante qualquer outra prova de culpabilidade, pela parte em cujo território eles forem encontrados e serão posto, sem mais formalidades, à disposição dos tribunais para julgá-los. As Potências dar-se-ão recíproca comunicação, no mais breve prazo possível das leis ou decretos já existentes, ou promulgados em execução do presente artigo. Artigo 6º - Os escravos, libertados após detenção ou a dispersão de um comboio no interior do continente, serão reenviados, se as circunstâncias o permitirem, ao seu país de origem senão, a autoridade local facilitar-lhes-á, tanto quanto possível, os meios de subsistência e, caso assim eles o desejem, os meios de fixação na localidade. Artigo 7º - Todo o escravo fugitivo que, no continente, reclamar a protecção das Potências signatárias, deverá obtê-la e será recebido, nos campos e estações por elas oficialmente estabelecidas, ou a bordo das embarcações do Estado que naveguem nos lagos ou rios. As estações e as embarcações privadas só poderão exercer o direito de asilo sob reserva do consentimento do Estado. Artigo 8º - Tendo em vista que a experiência de todas as nações que mantêm relações com África tem demonstrado o efeito pernicioso e preponderante das armas de fogo nas operações de tráfico e nas guerras intestinais entre tribos indígenas, e havendo essa mesma experiência provado, de modo manifesto, que a conservação das populações africanas, cuja existência as potências desejam expressamente salvaguardar, é radicalmente impossível, caso medidas restritivas do comércio de armas de fogo e de munições não forem estabelecidas, as Potências decidem, tanto quanto o permite o estado actual das suas fronteiras, que a importação de armas de fogo e especialmente das armas radiadas e aperfeiçoadas, assim como de pólvora, balas e cartuchos, fica, salvo nos casos e sob as condições previstas no artigo seguinte, proibida nos territórios compreendidos entre o paralelo 20º norte e o paralelo 22º sul, o Oceano Atlântico a oeste e, a lesta, o Oceano Índico e as suas dependências, incluindo as ilhas adjacentes ao litoral, até 100 milhas marítimas da costa. (...) CAPÍTULO II: Rotas das Caravanas e Transportes de Escravos por Terra: Artigo 15º - Independentemente da sua acção repressiva ou protectora em relação aos focos de tráfico, as estações, cruzeiros e postos, cujo estabelecimento é previsto no artigo 2º, bem como todas as outras estações estabelecidas ou reconhecidas nos termos do artigo 4º por cada Governo em suas possessões, terão ainda por missão vigiar, tanto quanto as circunstâncias o permitirem, na medida do progresso da sua organização administrativa, as rotas seguidas no seus territórios, pelos traficantes de escravos, de deter os comboios em marcha ou persegui-los em todo o lugar em que a sua acção poderá exercer-se legalmente. Artigo 16º - Nas regiões do litoral, conhecidas pelo facto de serem lugares habituais de passagem ou pontos de destinação dos transportes de escravos vindos do interior, assim como nos pontos de cruzamento das principais rotas de caravana que atravessam a zona vizinha à costa, já submetida à acção das Potências soberanas ou protectoras, serão estabelecidos postos, sob as condições e com as reservas mencionadas no artigo 3º, pelas autoridades das quais dependem esses territórios, com o intuito de interceptar os comboios e libertar os escravos. Artigo 17º - Uma vigilância rigorosa será organizada pelas autoridades locais nos postos e paragens costeiras, a fim de impedir a venda e o embarque dos escravos trazidos do interior assim como a formação e partida para o interior de bandos de caçadores de homens e mercadores de escravos. As caravanas que cheguem à costa ou à sua vizinhança, assim como as que cheguem do interior numa localidade ocupada pelas autoridades da Potência territorial serão, desde a sua chegada, submetidas a um exame minucioso quanto à composição do seu pessoal. Todo o indivíduo escravo, quer em seu País natal, quer em viagem, será posto em liberdade. (...) CAPÍTULO III: Repressão ao Tráfico Marítimo: Artigo 20º - As Potências signatárias reconhecem a oportunidade de tomar de comum acordo, disposições que tenham por objectivo garantir mais eficazmente a repressão do tráfico na zona marítima, onde ele ainda exista. (...) Artigo 25º - As Potências signatárias comprometem-se a tomar medidas eficazes para prevenir a usurpação do seu pavilhão e para impedir o transporte de escravos em embarcações autorizadas a ostentar a sua bandeira. Artigo 26º - As Potências signatárias comprometem-se a tomar todas as medidas necessárias para facilitar uma pronta troca de informações, aptas a levar à captura das pessoas que exerçam operações de tráfico. Artigo 27º - Um escritório internacional será criado, sendo estabelecido em Zanzibar. As Potências signatárias obrigam-se a entregar-lhe todos os documentos especificados no artigo 41º, assim como todas as informações de qualquer natureza, susceptíveis de ajudar na repressão ao tráfico. Artigo 28º - Todo o escravo, refugiado dum navio de guerra de uma das Potências signatárias, será imediata e definitivamente alforriado, sem que essa alforria possa subtrai-lo à jurisdição competente se ele cometeu um crime ou delito de direito comum. Artigo 29º - Todo o escravo, retido contra a sua vontade a  bordo duma embarcação indígena, terá o direito de exigir a sua libertação. A sua alforria poderá ser pronunciada por qualquer Agente de uma das Potências signatárias, a quem o presente Acto confere o direito de examinar o estado das pessoas a bordo das ditas embarcações, sem que essa alforria possa subtrai-lo à jurisdição competente de um crime ou delito de direito comum que por ele foi cometido. (...) CAPÍTULO IV: Países de Destinação, cujas Instituições Comportam a Existência de Escravidão: Artigo 62º - As Potências signatárias, cujas instituições comportam a existência de escravidão doméstica e cujas possessões, situadas em África ou fora dela, servem por isso mesmo, apesar da vigilância das autoridades, de locais de destinação dos escravos africanos, comprometem-se a proibir a sua importação, trânsito, saída, bem como o comércio. A mais activa e mais severa vigilância será por elas organizadas sobre os pontos onde se operam a passagem e a saída dos escravos africanos. (...) Artigo 66º - Os navios indígenas, pertencentes a um dos países mencionados no artigo 62º, caso existam indícios de que praticam operações de tráfico,  serão submetidos pelas autoridades locais, nos portos por eles frequentados, a uma verificação rigorosa da sua equipagem e passageiros, tanto na entrada como na saída. No caso de se verificar a existência de escravos africanos a bordo, proceder-se-á judicialmente contra a embarcação e contra todas as pessoas consideradas culpadas. Os escravos encontrados a bordo receberão as suas cartas de alforria, sob a responsabilidade das autoridades que tiverem operado na captura dos navios. Artigo 67º - Disposições penais, relacionadas com as previstas no artigo 5º, serão editadas contra os importadores, transportadores e mercadores de escravos africanos, contra os autores de mutilação de crianças ou de adultos do sexo masculino, bem como todos os que traficam ou contra os seus co-autores e cúmplices. (...) CAPÍTULO VI: Medidas Restritivas ao Tráfico de Bebidas Espirituosas: Artigo 90º - Justamente preocupados com as consequências morais e materiais que provoca, para as populações indígenas, o abuso de bebidas espirituosas, as Potências signatárias aplicam as disposições dos artigos 91, 92 e 93 numa zona delimitada pelo paralelo 20º norte e pelo paralelo 22º sul, terminando a oeste no Oceano Atlântico e a leste no Oceano Índico e suas dependências, incluindo as ilhas adjacentes ao litoral até 100 milhas marítimas da costa. Artigo 91º - Nas regiões dessa zona em que for verificado que, quer em razão de crença religiosa, quer por outros motivos, o uso de bebidas destiladas não existe ou não se desenvolveu, as Potências proibirão a sua entrada. A fabricação de bebidas destiladas nessas regiões será igualmente proibida. Cada Potência determinará os limites da zona de proibição de bebidas alcoólicas nas suas possessões ou protectorados, e será obrigada a notificar o traçado desses limites às outras Potências no prazo de seis meses. A proibição acima referida somente poderá ser derrogada em relação a quantidades limitadas e destinadas ao consumo das populações não indígenas e introduzidas sob o regime e nas condições determinadas por cada Governo. Artigo 92º - As Potências que tenham possessões ou exerçam protectorados nas regiões da zona, as quais não estejam submetidas ao regime da proibição e onde as bebidas espirituosas são, no presente, importadas livremente, ou sejam sujeitas a um imposto de importação inferior a 25 francos por hectolitro de 50º centígrados, obrigam-se a estabelecer sobre tais bebidas um imposto de importação de 15 francos por hectolitro de 50º centígrados, durante os três anos seguintes à entrada em vigor do pressente Acto Geral (...) Artigo 93º - As bebidas destiladas,, fabricadas nas regiões mencionadas no artigo 92 e destinadas ao consumo interno, serão agravadas de um imposto de consumo. O Imposto de consumo, cuja cobrança as Potências se obrigam a estabelecer no limite do possível, não será inferior ao mínimo do imposto de importação fixado no artigo 92.”        


BSAC Sigla da British South Africa Company.


Berlim, Conferência de - A riqueza de África era a razão de ser da viragem dos interesses das potências europeias para este continente, havendo a acrescer ainda o facto de terem ficado amputadas das suas colónias americanas, por estas se terem sublevado e ficado independentes. Em 1884 a Inglaterra reconhecia a Portugal a soberania nas duas margens do rio Zaire até à fronteira do novo estado do Congo, criado pelo Rei Leopoldo II da Bélgica, o que contrariava o espírito expansionista francês e alemão. Otto von Bismark, chanceler alemão, estava em completo desacordo com este tratado e, conluiado com a França, na altura liderada pelo primeiro-ministro Jules Ferry, convidou as potências europeias para uma conferência, que se veio a realizar em Berlim, entre Novembro de 1884 e Fevereiro de 1885, e na qual Portugal também participou. Nesta reunião de Berlim, referida genericamente como a que partilhou África, foram discutidos vários pontos: 1) - liberdade de comércio na bacia e foz do rio Congo; 2) - liberdade de navegação nos rios Níger e Congo; 3) - definição dos tipos de actuação a que as potências se obrigariam para se tornarem donas efectivas dos territórios que viessem a ocupar; 4) – supressão do tráfico de escravos. Após o findar da conferência, em Fevereiro de 1885, ficou decidido que qualquer País só poderia reclamar a posse de um determinado território africano depois de ocupar o mesmo em regime de permanência. Para tal, em 26 de Fevereiro de 1885, foi assinado o “Acto Geral”, onde se definia um novo conceito de “direito público colonial” e se preambulava a necessidade da “existência de uma autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos e a liberdade de comércio e de trânsito” (sic). Era o fim do direito histórico à posse das terras, direito esse usado e abusado pelos portugueses nos areópagos internacionais, na falta de outros argumentos. A partir de Berlim nascia um novo conceito sobre o direito internacional, assente na existência efectiva de uma autoridade eficiente para fazer respeitar os direitos conquistados e permitir a livre circulação comercial. As nações europeias passariam a ter direito aos territórios que soubessem conquistar e manter uma administração, para além de comunicarem às outras potências coloniais as suas zonas de implantação, a fim de evitarem conflitos.


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(1) - Já analisado anteriormente
(2) - A abrir ficha


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EFEMÉRIDE


Nesta quinzena atravessou-se o dia 25 de Setembro que, para a História de Moçambique, representa o início da luta armada, em 1964, que daria a sua quota parte contributiva para o despoletar do golpe de estado militar do 25 de Abril, em Lisboa, uma década mais tarde.


Por se atravessar esta efeméride adianto um pouco o relógio das fichas de Moçambique Colonial e, para assinalar este acontecimento, publico a Proclamação da Luta Armada, declaração esta que que foi lida aos microfones da rádio tanzaniana, em Dar-es-Salam, pelo então Presidente da FRELIMO, Eduardo Chivambo Mondlane e que oficializou a abertura das hostilidades bélicas contra o regime colonial português, discurso este que é do desconhecimento da maioria dos moçambicanos.

 
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Proclamação da luta armada Documento emanado pelo Congresso da FRELIMO e que se trata da declaração de guerra que aquela Frente, por se considerar representante do povo moçambicano, apresentou contra o Estado Português, tendo a mesma sido lida por Eduardo Mondlane, como Presidente da FRELIMO. Oficializa, assim, o começo da guerra nacionalista, que se iniciou no mesmo dia da proclamação - 25 de Setembro de 1964. Tem o seguinte teor: “ Moçambicanos e Moçambicanas: Em Setembro de 1962, o Congresso da FRELIMO afirmou unanimemente a vontade e determinação do povo moçambicano de lutar por todos os meios para a conquista da Independência Nacional. A FRELIMO quis, por meio de esforços pacíficos, forçar o governo português a satisfazer as exigências políticas fundamentais do povo moçambicano, a FRELIMO expôs junto das instâncias pan-africanas, afro-asiáticas e mundiais, a situação em que se encontrava o povo moçambicano, e denunciou os crimes do colonialismo em Moçambique. E foi assim, que depois do povo moçambicano, a OUA, as Nações Unidas, a opinião pública em geral, condenaram também a política criminosa do governo português. Apesar de tudo isto, o colonialismo português continua a exercer a sua dominação sobre a nossa Pátria. As riquezas do nosso País e o tratamento do nosso povo continuam a ser explorados pelos colonialistas portugueses e seus aliados imperialistas. Todos os dias são assassinados camaradas por causa da sua participação activa na luta pela libertação do nosso País, as prisões estão cheias de patriotas, e aqueles que estão ainda em liberdade vivem na incerteza do amanhã. A PIDE aumenta o número dos seus agentes e desenvolve os seus meios de tortura; o exército português é reforçado e aumenta continuamente os seus efectivos em homens e material de guerra; a psicossocial prossegue a sua campanha com vista a enganar o povo moçambicano. Moçambicanos e Moçambicanas: a FRELIMO conduz sempre uma acção de maneira a assumir plenamente as suas responsabilidades de guia da revolução moçambicana. Por isso, paralelamente aos esforços pacíficos, a FRELIMO entregou-se, também, vivamente à criação de condições para fazer à eventualidade da luta armada. Hoje, face à constante recusa do governo português em reconhecer o nosso direito à independência, a FRELIMO reafirma que a luta armada é a única via que permitirá ao povo moçambicano realizar as suas aspirações à liberdade, justiça e bem-estar social. Moçambicanos e Moçambicanas: Operários e camponeses, trabalhadores das plantações, das serrações e das concessões, trabalhadores das minas, dos caminhos de ferro, dos portos e das fábricas, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres e jovens patriotas: em vosso nome, a FRELIMO proclama hoje, solenemente, a insurreição geral armada do povo moçambicano contra o colonialismo português, para a conquista da independência total e completa de Moçambique. O nosso combate não cessará senão com a liquidação total e completa do colonialismo português. Moçambicanos e Moçambicanas: A revolução moçambicana, obra do povo moçambicano, insere-se no quadro geral da luta dos povos de África e do mundo pela vitória dos ideais da liberdade e da justiça. A luta armada que nós hoje anunciámos, tendo por objectivo a destruição do colonialismo português e do imperialismo, permitir-nos-á instaurar no nosso País uma nova ordem social popular. Assim, o povo moçambicano dará grande contribuição histórica para a libertação total do nosso continente, para o progresso da África e do mundo. Moçambicanos e Moçambicanas: Neste momento grave e decisivo da história do nosso País, em que unanimemente nos comprometemos a enfrentar o colonialismo português, a FRELIMO cumprirá o seu dever. Reforcemos continuamente a nossa unidade, a união de todos os moçambicanos do Rovuma ao Maputo, sem qualquer discriminação. Consolidemos cada vez mais a nossa organização, estejamos sempre de maneira organizada. Por toda a parte, em cada lugar, a FRELIMO estará presente e pronta a conduzir a luta. Sejamos firmes, decididos e implacáveis, frente ao colonialismo português, aos lacaios do colonialismo português, frente a todos os agentes da PIDE e a todos os traidores do nosso Povo e da nossa Pátria. Unidos venceremos! Independência ou morte! Moçambique vencerá! Viva a FRELIMO! Viva Moçambique! Viva África! ///" Dar-es-Salam, 25.09.64.

 
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A criação da FRELIMO, o desencadear da guerra nacionalista, as conclusões dos I e II Congressos da FRELIMO durante o decurso do conflito, as biografias dos principais personagens quer do lado português quer do moçambicano (políticos, civis e militares) serão dissecados neste blogue a seu tempo e efectuadas as respectivas fichas, quando chegarmos a meados do século XX.
 


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LEITURAS


Título: O tempo dos amores perfeitos
Sub-título: Angola em 1894. O amor proibido entre um tenente e a filha do governador. Numa época de conquista, guerra e intrigas. Um romance arrebatador.
Autor: Tiago Rebelo
EditoraEdições ASA II, Lda.       Ano2012       Págs.: 608       Género: Romance colonial








O género literário do romance que aborda temas coloniais está na crista da onda. Vários escritores debruçam-se sobre o nosso passado colonial, sem complexos e deixam-nos escritos de histórias interessantes, quer seja em romances históricos, de aventuras, de amores ou numa mescla de tudo. Sinais dos tempos actuais pelo País que somos sem rumo e à deriva, que acaba por nos trazer a nostalgia doutros tempos em que pensávamos que éramos alguma coisa.
 
 
À fase dos romances dos Descobrimentos e da época histórica que os determinaram (e que ainda saem lançamentos actuais) segue-se, agora, a fase pujante do romance que aborda os aspectos do nosso modo de viver colonial, nas suas diversas vertentes. Arrumada a época dos complexos de esquerda em que denegrimos a nossa História, num puro masoquismo colectivo e em que passávamos a vida a pedir desculpas por tudo o que havíamos ultramarinamente feito de mal (muito) e de bem (pouco) num passado recente, eis agora a surgirem, como cogumelos outonais, romances descomplexados, pujantes e fascinantes.  

 
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É ao que se reporta o romance acima referido e que acabei de ler. O autor relata a saga dum seu antepassado - Carlos Augusto de Noronha e Montanha - que, no finais do século XIX, como militar combateu sublevações nalguns locais em Angola. A glória dos seus feitos militares será a razão com que ficará conhecido pelo nome de guerra "Muxabata" (Guerreiro Invencível) mas as suas vitórias militares não terão equivalência aos seus amores entre ele e Isabel, a filha do Governador, por anúvios inter-famílias.


Posteriormente, na recta final da sua vida conimbricense, em meados do século XX, em forma de legado memorial deixou a história da sua saga militar angolana escrita num pequeno livro titulado "Odisseia dum Pioneiro Colonial nos Sertões de Angola"  e que foi dado à estampa pública no tempo do Estado Novo.
 
 
 
 
 
 
E foi este livro que serviu de fermento para que um seu descendente - precisamente o Autor Tiago Rebelo - qual pasteleiro literário, cozinhasse o bolo de letras que é o presente romance o qual, baseado em factos verídicos porque vividos e narrados pelo seu antepassado, mescla depois com ficção amorosa para dar um melhor enredo ao tempo a que se reporta. 
 
 
Volto a repetir: acabei de ler um romance descomplexado, pujante e fascinante. Duma riqueza de pormenores que me encheu as medidas e que, por isso, recomendo vivamente.

 
 
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Título: O feitiço da Índia
Sub-título: Três portugueses, em três épocas diferentes, deixam-se encantar pela Índia e pelas suas mulheres.
Autor: Miguel Real
EditoraD. Quixote          Ano2012             Págs.: 381         Género: Romance







Um romance que aborda a vida de José Martins - o primeiro degredado a chegar a solo indiano - quando integrado na armada de Vasco da Gama. No seguimento do salto da história da História, aborda depois a vida de Augusto Martins, descendente do degredado e, se o seu antepassado, foi o primeiro a chegar a solo indiano, este foi o último português a ficar em Goa, aquando da invasão da União Indiana.
 
 
O romance tem um fio condutor puxado pelo narrador, que é o filho de Augusto Martins o qual, após a abertura dos canais de circulação entre Portugal e a Índia face à revolução abrilina, ruma até Goa, na busca do pai, acabando por ficar por lá, apaixonado pelo feitiço da Índia. 
 


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PORQUE SÓ HÁ UM PLANETA







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ACONTECEU



Santiago Carrilho - Faleceu Santiago Carrillo, ex-líder comunista espanhol. No seu longo percurso político, que se inicia como combatente da guerra civil espanhola (1936/1939), atinge o seu zénite quando, na fase da transição da ditadura franquista para a actual democracia parlamentar, Santiago Carrilho teve  a lucidez de se entender com um político conservador vindo da área franquista - Adolfo Suarez - e, juntos, deram uma lição ao mundo ao sobreporem os interesses da implementação da democracia aos interesses partidários e ideológicos.
 
 
Santiago Carrillo, de formação comunista caldeada na prisão e na clandestinidade, aceitou o regime monárquico, a figura do Rei como Chefe de Estado e a bandeira nacional. Percebeu o futuro da Europa unida e unificada e, assim, foi um dos pais do euro-comunismo. Adolfo Suarez, vindo das correntes políticas conservadores do franquismo que servira, enquanto primeiro-ministro legalizou, contra a opinião dos seus pares, o Partido Comunista Espanhol.
 
 
Estiveram mais uma vez juntos na luta pelos ideais democráticos aquando da tentativa de golpe de estado de Tejero Molina, quando este invadiu as Cortes, aos tiros e ordenou a todos os deputados no plenário que que se agachassem no chão (23/02/1981). E, na casa da democracia, todos os excelsos deputados se acobardaram e puseram-se de cócoras.
 
 
Para o  Mundo ficou a lendária imagem de apenas três homens que recusaram corajosamente esta ordem prepotente permanecendo, sentados e altivos, nos seus lugares: Gutierrez Mellado (que interpelou os revoltosos, como membro do Governo), Adolfo Suarez e Santigo Carrillo.
 
 
 



Santiago Carrillo morreu e Adolfo Suarez para lá caminha, quebrado no momento presente por uma doença neuro-degenerativa. Hoje, olhando para os actuais líderes políticos europeus (mas eles existem?), para todo este manto cinzentista que nos cobre de teorias tecnocráticas em que o primado da política cedeu o seu lugar à ganância economicista e as pessoas não passam de meros números estatísticos, suspiro de saudade e digo: que falta que fazem Homens* como esta dupla. Já não há políticos desta têmpera.


*  Homens no sentido humano e não apenas limitados ao sexo masculino.



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E agora vou ...





 

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