"O Mundo não é uma herança dos nossos pais, mas um empréstimo que pedimos aos nossos filhos" (Autor desconhecido)

domingo, 15 de julho de 2012

Anna Maria Falconbridge


VIAJANTES, AVENTUREIROS E EXPLORADORES


Anna Maria (Horwood) Falconbridge - (Bristol, Julho de 1769 - Tortola (Ilhas Virgens Britânicas), 1816 (?) - Viajante. Tendo-se casado em 1788 com o cirurgião Alexander Falconbridge, acompanhou este, por duas vezes, a Serra Leoa (1).



No decurso da primeira viagem (1790) teve oportunidade de visitar o forte de Bunce Islands (2) e a sua oposição ao esclavagismo foi aumentando de dia para dia. Apesar de viver num barco ancorado em Bunce Islands, pois o seu marido não a autorizava a contactar com os negreiros da ilha, por vezes ela acompanhou-o a terra, tudo observando e anotando. O seu marido, que fora cirurgião em navios de negreiros, foi assumindo cada vez posições mais anti-esclavagistas, vindo a tornar-se num abolicionista convicto. Um trabalho seu denominado "Accountt of the slave trade on the coast of Africa" descreve as desumanas condições em que os escravos (sobre)viviam. Foi publicado em 1788, em Londres, sob o patrocínio da "London Committee for the Abolition of the Slave Trade", sendo considerado o primeiro documento de propaganda abolicionista.


Na sua segunda viagem (1792) já o marido não ia como médico mas sim como agente comercial duma empresa britânica (Sierra Leone Company). Instalam-se na recém-fundada Freetown(3) e Anna Maria Falconbridge torna-se uma observadora priveligiada do nascimento duma cidade utópica, fundada em função de escravos libertos. Nada lhe escapa no seio da sociedade colonial como a título exemplificativo relata o destino das prostitutas londrinas que, depois de alcoolizadas, eram embarcadas à força para aquela costa africana, afim de procriarem com colonos europeus: "Então, para  desgraça da minha Pátria, mais de cem mulheres  infelizes foram seduzidas de Inglaterra para praticar as suas iniquidades mais brutalmente neste país horrível." Dotada duma resistência espantosa vê grande parte da população europeia ser ceifada por diversas doenças, mas ela a tudo resiste, apesar da sua compleição física ser, aparentemente, frágil. Como ela dirá mais tarde, já em Londres, "Tenho de dizer que 75% dos europeus que viajaram até à Serra Leoa, em 1792, morreram pouco tempo depois de chegarem e eu reconheço que, embora nunca tenha estado  no meio de tanta doença e morte, me sentia muito melhor que em Inglaterra." Pouco tempo antes de morrer Alexander Falconbridge (de eventual ataque cardíaco) é  demitido da empresa, acusado de alcoolismo e, poucas semanas após ter enviuvado, Anna Maria Falconbridge, a quem a morte do marido a libertara dum homem "irritável, desagradável e uma verdadeira carga para si", em função do seu estado de total dependência de bebidas alcoólicas, volta a casar-se, em Freetown, com Isaac duBois.



Antes de regressar a Londres percorre o rio Gâmbia e, de seguida, ruma até Cabo Verde, Açores e Jamaica. De regresso à capital britânica (Agosto de 1794) trava uma batalha com a empresa do seu defunto marido, a quem exige os dinheiros que entendia que lhe eram devidos até à morte do mesmo. Perante a recusa desta, escreve catorze cartas que publica, a partir de 1794, onde denuncia a empresa em causa. As cartas, compiladas no livro "Narrative of two voyages to the river Sierra Leone during the years 1791, 1792, 1793", retratam a primeira narrativa feminina que há conhecimento sobre a África Ocidental.



Em princípios do século XIX Anna Maria Falconbridge muda-se para as Ilhas Virgens Britânicas, onde virá a falecer (provavelmente em 1816), em Tortola.


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(1) - O nome de Serra Leoa deve-se ao facto de, quem vem por mar, ao avistar terra ao longe, o formato da serra que se avista dar a impressão duma leoa. Os primeiros europeus a lá terem chegado foram os portugueses, em 1460, liderados pelo navegador Pedro Sintra. Desde os primórdios da chegada dos europeus, que a sua principal fonte de receita económica foi a escravatura.



(2) - Bunce Island (Ilha Bunce) - Era um entreposto negreiro inglês, fundado em 1670, e por onde passaram centenas de milhares de escravos vendidos para as Américas (do Norte e Sul). Localizado no rio Serra Leoa a uns vinte quilómetros da actual Freetown.





Bunce Island


Dispunha de uma "Casa Grande", que era a habitação e escritório para o Agente Comercial da firma que explorasse o negócio, armazéns de escravos e respectivos terreiros, dormitórios, torres de vigia, um cais e um forte com dezasseis canhões. Foi encerrado, definitivamente, em 1808.



(3) - Freetown - Capital da Serra Leoa. Em 1787 a área onde hoje se situa esta cidade foi ocupada, numa tentativa inicial, por escravos libertos vindos do Jamaica, sob inspiração do abolicionista Granville Sharp. Em 1790 um entreposto comercial que funcionava naquela área foi destruído e, em 1792, fundou-se Freetown com escravos libertos e vindos do Canadá.




Free Town em 1798



De seguida começaram a  chegar escravos forros dos Estados Unidos e do Caribe. Dois anos mais tarde (1794) forças francesas arrasaram a cidade, o mesmo acontecendo em 1800, mas desta vez atacada por tribos locais.



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Para quem quiser ler as 14 cartas consultar: http://www.marylouiseclifford.com/id20.html. Em inglês ou com tradução automática para português.



 
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HISTORIANDO MOÇAMBIQUE COLONIAL


 



Mataca – (1800 - 1879) – Régulo* jáua**. Abandonando o seu núcleo familiar fundou a sua capital em Mulembe, no interior do Niassa, dominando a sua parte ocidental, numa área que se localizava entre os rios Rovuma, o Lugenda, Luchilingo e Luamba. Tendo-se intitulado sultão, criou fortes raízes políticas com chefaturas locais através de casamentos. Tinha um harém de centenas mulheres dispersas por várias aldeias. Detinha o monopólio comercial das armas de fogo, panos e missangas e organizou grandes caravanas de escravos que mercadejava com os árabes e só ele tinha competência para rezar pela chuva. Muito poderoso, governou na base do terror, estruturou o seu exército, com cadeia de comando e estabeleceu um secretariado para o relacionamento e comércio com o exterior. A sua capital tinha um conjunto habitacional de cerca de mil casas, quando David Livingstone* o visitou, em 1866. Mantinha os campos de cultivo devidamente drenados. Os seus descendentes tornaram o seu nome num título dinástico e também num símbolo do terror, sendo que o poder dos mesmos só foi debelado em 1912, por actuação militar das forças da Companhia do Niassa**.
Georges Stucky - (Marselha, 17/07/1874 - Marselha, 1940 (?)) - Prazeiro. Descendente de suíços com linhagens militares, desembarca em Moçambique em 1897, indo directamente para a Zambézia, a chamamento do seu irmão, Joseph Stucky, para trabalhar com ele em duas firmas que iriam dar origem à Companhia do Boror**. No ano seguinte colabora com João de Azevedo Coutinho** na destruição da República da Maganja da Costa*, guardando a fronteira a Leste do Boror, submetendo e ocupando o abandonado prazo de Mucuba. Ainda nesse ano e  no seguinte percorre todo o território que viria a dar origem à Companhia do Boror, desde a Maganjanbaté ao rio Tejungo, pelas terras de Minhanvâni e dos tacuanes, topografando as mesmas e ocupando-as na efectividade. 



No segundo semestre de 1899 entra na campanha contra o regulado do Mataca, no Niassa, elaborando o famoso "Diário da Campanha do Mataca". Em 1900 colabora com os seus sipaios* em acções paramilitares no Alto Boror, capturando o Muene** Nagare, explorando os territórios nas zonas da Alta Maganja, Lómué, Mujema, Podo, etc., até que, em Outubro de 1902, acaba ferido num combate travado em Mulamáli. Regressando ao Boror, torna-se o segundo Director da Companhia até que, em 1914, com o deflagrar da Primeira Guerra Mundial, acaba mobilizado para França, para onde segue no ano seguinte. Em 1916 é reformado por doença, fixando-se em Marselha,  onde entra nos quadros da Companhia do Boror nesta cidade, onde virá a falecer sem mais ter voltado a África.


 
Exploração do Niassa– O território que forma o actual Niassa já era ancestralmente conhecido pelos mercadores árabes e swahilis, súbditos do Sultão de Zanzibar** ou do Íman de Mascate e que, 700 anos antes dos portugueses ali terem chegado, tinham iniciado um intenso comércio com os povos do interior, nomeadamente na aquisição de escravos e abadas*. No decurso do século XIX os povos do Niassa eram compostos, essencialmente, por duas etnias: os Yao (cuja derivação deu a palavra jáua ou ajaua) e os Nianjas (cuja derivação deu a palavra Niassa). Os jáuas**, dos quais não existem registos anteriores a 1700, já viviam no Niassa quando se deu a expansão dos maraves*, em finais do século XVI, princípios do século XVII. No decurso do século XIX terão sucedido três invasões externas ao território, levadas a cabo por outros povos africanos, tendo a primeira delas sido efectuada por macuas (1831/1845) e as outras por angunes** (1845/1870 e 1875/1897). Paralelamente a estas intromissões, os europeus também se interessaram pela exploração do território e do lago com o mesmo nome - lago Niassa** – que fica situado na zona dos Grandes Lagos, sendo o terceiro de África, em superfície. Foi atravessado, no primeiro quartel do século XVII, por Gaspar Bocarro* (1616); pelo Padre jesuíta Luís Mariano, que atingiu a corte do rei marave (1624) e que elaborou um documento descritivo, documento este que é referido no “Oriente Conquistado a Jesus Cristo pelos Padres da Companhia de Jesus”, da autoria do Padre Francisco de Sousa, escrito entre 1697 e1710. Também por outro jesuíta, o Padre Manuel Godinho (1665), que ao lago denominou de “Marave” ou “Zachaf”, deu informações escritas sobre o lago e o rio Chire tudo assente num mapa que viu, na sua viagem da Índia para Portugal feito por um português que andou muitos anos pelos reinos do Monomotapa. Na parte ocidental do lago os prazeiros* Inácio de Meneses, João de Jesus Maria e, posteriormente o seu filho Romão de Jesus Maria, do prazo* do Marral, mantinham uma intensa actividade de comércio, esclavagista e não só, naquelas zonas lacustres, tendo inclusive João de Jesus Maria fornecido a David Livingstone*, em 1858, informes sobre o lago que este explorador aproveitou, quando explorou esta região no ano seguinte e, vinte anos depois, a African Exploration Found financia uma expedição ao mesmo. Ainda em meados do século XIX caravanas de prazeiros continuavam a frequentar as margens do lago, tais como as de Cândido da Costa Cardoso, comerciante de Tete desde 1846 e de Vitorino Romão José da Silva**, desde 1853. Fruto disso a Sociedade de Geografia de Lisboa, preocupada com as intromissões estrangeiras, reclama junto do governo de Lisboa a posse do Niassa. Assim, Augusto Cardoso** explora o Lago Niassa em 1885 e, em 1890, Eduardo Valadim** tenta estabelecer soberania portuguesa nas terras do Mataca mas acaba chacinado, o mesmo acontecendo a quase toda a sua expedição. Em 1898, através de António Maria Cardoso**, expediciona-se de novo ao Niassa, tentando-se ocupações do seu interior, que se vai cartografando e acabando por se criarem os concelhos de Metarica, Amaramba e Lago. Em 1899 sucede-se nova expedição militar comandada pelo Major Manuel de Sousa Machado, onde se integra Georges Stucky que, sobre a mesma, escreveu um diário pessoal, extremamente rico em pormenores e que nos dá uma visão subjectiva do quão difícil eram aqueles tempos. Por o mesmo diário ser de escasso conhecimento público e de interesse histórico para o conhecimento da penetração europeia no Niassa (só quarenta anos depois de ter sido escrito é que saiu ao prelo em Portugal e, mesmo assim, em edição limitada) reproduz-se o mesmo na íntegra: Diário da campanha do Mataca – Julho/Novembro de 1899 (autor: George Stucky) – Advertência: Este diário é uma simples relação dos acontecimentos que se desenrolaram, como os pude e soube ver, durante a campanha do Kouemba - Mataca. Apesar de já ter naquela época dois anos de vida difícil e de viagens perigosas ma Maganja, nos sertões do Alto Boror, no Lomué, eu era muito novo e não podia sentir e aguentar enfim os factos e as vicissitudes de uma campanha tão dura como um veterano em campanhas coloniais; faltava-me a idade mais a experiência. Não podia competir-me de fazer um relatório completo, por falta de competência e tempo. Fui comandante dos sipaios do Boror e, às vezes, comandante do comboio (1200 homens). Além disto fiz, próprio moto, o levantamento total da campanha desde Milange até ao regresso a Milange. Ora este trabalho, verdadeiro trabalho de degredado ou melhor de Beneditino, só por si absorveria já as horas de marcha e muitas dos acampamentos. É possível que certos leitores possam pensar que tudo o que escrevi é muito “terre à terre”, mas é que a vida de todos os dias em campanhas africanas, fora naturalmente das excitações dos combates, gira (é facto evidente) à roda de funções puramente materiais, ou de banais acontecimentos. Outros acharão estas notas pouco interessantes, sem eloquência nenhuma, sem a vividez do estilo que costumam encontrar em tais narrativas. Mas se tal não são é porque – confesso-o com toda a franqueza – sou desprovido do talento necessário e ainda porque os acontecimentos de que fui testemunha não deram lugar, às tropas, de fazer proezas semelhantes às dum Mouzinho em Gaza … por exemplo … Mas o que faltou dum lado, por falta de adversários que se possam comparara com os zulus, foi compensado, creio, pelas dificuldades e misérias que tivemos de sofrer, tão violentas às vezes, de submeterem o nosso moral a uma tensão prolongada, mais difícil de sustentar que a de umas horas de assaltos, por muito perigosas que fossem. Nada de lutas gigantescas, nada de combates corpo a corpo memoráveis, à moda zulu ou sudanesa, nada de “fait d´armes” u de milagres militares dignos da pena de um Aires de Ornelas, tivemos – é facto. Mas o milagre foi o da extraordinária resistência do soldado português, o milagre foi o da tenacidade férvida, de esforços constantemente renovados, o milagre, enfim, foi o da dedicação inteira, absoluta, completa dos nossos bons pretos da Zambézia. E já bastaria isto para a eterna comemoração a campanha nos anais portugueses. Houve mais tarde, bem o sei, nas colónias estrangeiras, em regiões desérticas ou ainda mais cruéis que as dos lagos – campanhas muito mais duras, ais atrozes, mas foram feitas com brancos e indígenas de elite, bem escolhidos, voluntários, já conhecedores do clima, treinados nas privações e sofrimentos e dotados dum espírito de sacrifício confinando ao martírio … mas nunca o foram com tropas novas de europeus, e em tal número vindas directamente do reino, sem ter recebido em África o baptismo necessário da experiência e de adaptação. Ao reler estas páginas, depois de tantos anos decorridos (já lá vão uns quarenta), tenho o sentimento inapagável de que, se houve certas fraquezas, foram elas amplamente compensadas pelas altas virtudes de que todos, oficiais e soldados, sipaios e humildes carregadores, tantas provas deram em prol do prestígio do exército português e para honra imortal da sua Pátria. – Diário da expedição ao Niassa: Do Comandante dos Sipaios da Companhia do Boror: Nomeado por despacho de Sua Excelência o Governador de Quelimane, Sr. Soares Andrea, de 20 de Junho (de 1899), como Comandante das forças da Companhia do Boror, deixei Namacurra (prazo Boror) no dia 5 de Julho com: 177 sipaios, 1276 carregadores e 4 empregados, um europeu, Sr. Tomás de Bastos, com 1227 volumes de arroz. Cheguei a Milange, sem incidentes em 15 de Julho. Faltaram-me só alguns carregadores, estafados pela marcha forçada e tive que deixar atrás a cargo de alguns sipaios, para não perder o arroz que traziam. 15 de Julho: À minha chegada a Milange encontro já reunidos os sipaios do Marral (500) que não tiveram grande caminho a fazer, e os da Maganja da Costa, comandados pelo meu amigo, o alferes Cunha (1400). No mesmo dia, por pequenos grupos, vejo chegar os da Companhia da Zambézia, em número de 600 aproximadamente. 16 de Julho: O forte apresenta um aspecto que ninguém com certeza podia já ter visto desde a sua criação … Tinha deixado Milange em Abril passado, quando vim para delimitar o prazo Boror com o Massingir; nada havia de notável: existia apenas o forte com o seu recinto e, um pouco afastadas, nos arredores, as palhotas e maçassas das mulheres dos soldados indígenas: angolas na maior parte. Hoje é uma verdadeira aldeia que eu descubro nos declives da serra Tumbini. Grandes e belas palhotas foram edificadas em pouco tempo; umas servirão de armazéns de víveres outras de casernas para as tropas, de cavalariças para os cavalos, e não conto as imensas ramadas para as tropas auxiliares indígenas e carregadores da futura expedição. É a Companhia da Zambézia que havia sido encarregue destas instalações e bem se pode dizer que o Sr. Pinho (administrador do prazo) merece todos os louvores no desempenho da sua missão. Recebo um telegrama do Governador ordenando-me de seguir imediatamente com as minhas forças para Chilomo, afim de ir receber aí os víveres para a coluna e munições. Partirei amanhã de manhã cedo. Este pequeno passeio me fará sem dúvida algum bem e me dará ocasião de visitar a colónia inglesa do B.C.A. (nota do Autor: BCA - British Central África – consultar ficha), o que é sempre instrutivo. 18 de Julho: Partimos cedo. A minha gente, não sei porquê, não parece lá muito encantada com esta viagem … a julgar pelas reflexões que me chegam aos ouvidos de toda a parte. Mas pouco me importa. Alto em Chindio para pernoitar. 19 de Julho: Violenta etapa hoje, pois quero chegar a Chilomo esta noite, custe o que custar. Chegamos pelas sete horas da tarde. Faço acampar toda a minha gente ao pé do Ruo … e sigo eu à Residência onde sei encontrar o meu bom amigo o Sr. Costa, que conheci como Inspector dos prazos em Quelimane. Inútil dizer que fui recebido de braços abertos, como sabem receber os Portugueses. Não tenho visto nada de interessante durante a viagem; apenas um sítio há despertado a minha atenção, perto de Chindio, estação telegráfica: descobre-se dali uma linda vista sobre o monte Chiperone e seus arredores. Pretende-se que há muitos elefantes nas suas florestas. Pena é que não posso lá ir fazer um passeio. De longe, o Chiperone parece uma serra importante cuja altura atinge uns 2.500 metros. Os ingleses chamam-lhe Clarendon. Amanhã serei apresentado ao Major, comandante da expedição: Sr. Manuel de Sousa Machado, como também aos oficiais … os meus futuros camaradas. Muito reflicto a respeito desta entrevista. Quereria já conhecer o Major. Que tal será? Já me foi descrito, mas a minha imaginação trota, trota e faz todas as suposições. 20 de Julho: O meu amigo Costa acompanha-me na visita ao Major … e faz as apresentações. Recebido muito amavelmente por todos. É um homem bastante alto, robusto, com fisionomia rude … verdadeira cabeça de “Grognard” mas de “grognard bon enfant”. Cinquenta anos pouco mais ou menos, cabelos e enormes bigodes grisalhos, olhos pequenos, vivos, afundados nas suas órbitas. Nenhuma altivez: a simplicidade mesmo. Afinal, bom tipo, muito prezado dos seus subordinados, diz-se. Passa por ser enérgico; que o pareça, é facto, mas que o seja … veremos. O ponto importante para nós é saber que experiência tem ele das campanhas coloniais? Ora, ninguém soube responder-me categoricamente. Disseram-me só que conduziu uma vez, há anos, uma coluna da Beira ao Zambeze! Passei três dias em Chilomo, muito agradáveis, convidado de todos os lados. Sabe-se que o Chilomo inglês fica na margem direita do Ruo e que o Chilomo português lhe faz frente do outro lado do rio. Chilomo português reduz-se a duas casas: a Residência e a estação telegráfica. Eis tudo. Tenho tido durante estes três dias todo o tempo de fazer mais amplo conhecimento com todos os oficiais; a maior parte são muito novos e fazem a sua primeira viagem em África. Muitas ilusões ainda … mas que não durarão muito tempo. 23 de Julho: Recebo os volumes do comboio e distribuo-os aos carregadores: o que não representa pequena tarefa … pois todos querem apanhar naturalmente os mais fáceis, os mais leves. É preciso vigiar tudo com este diabos, senão há imediatamente abusos escandalosos. O Chilomo inglês é de outra maneira importante que o seu vizinho e demonstra a rapidez e a segurança com que os ingleses sabem trabalhar em matéria de colonização. Há esplêndidas avenidas, livres de areia e mesmo de poeira, o que se torna muito raro algures … algumas casas bonitas, várias firmas comerciais com bastante importância, como a do Sr. Wiese, velho amigo dos nossos directores, estabelecido no Niassalândia já lá vão uns bons pares de anos. Deve reparar-se: a Residência do Administrador inglês, o Post-Office; o Administrador cumula todos os empregados administrativos, o que representa um belo sistema de economia. Há sempre duas canhoneiras no rio, ancoradas perto da Residência; um serviço importante de navios entre Chilomo e Chinde – sobre uma das bocas do Zambeze, cujo porto foi descoberto há poucos anos e onde a Inglaterra obteve uma concessão perpétua em 1891. 24 de Julho: Volto a Milange, no dia 24 e chegada no dia 26 para almoço. Os meus carregadores algumas horas mais tarde. Marcha rápida como se vê, pois por homens carregados, três dias são necessários. Como soube que a coluna europeia devia seguir-me imediatamente, acompanhada de umas nuvens de sipaios, não quis correr o risco de nos encontrarmos e de deixar supor que os meus pretos eram vadios. 27 de Julho: Espera-se o Major, que deve vir com a coluna; baldada espera … entretanto vou passear nos arredores do forte. O forte, feito em 1891, é mal situado, para a baixa da serra de Tumbini, a uns 450 metros de altura, sobre a orla dum declive forte, obrigando as águas a juntarem-se lá. Antes da convenção luso-inglesa de 1891, o forte havia sido montado na outra margem do rio Mulosa (direita) numa encosta bastante alta, mas o lugar foi reconhecido mais tarde como tão doentio que foi-se obrigado de abandoná-lo. Foi edificado de novo no lugar actual, mas creio bem que não deve ser mais salubre por isso. As mudanças de temperatura e de pressão higrométrica são consideráveis: em menos de uma hora tenho notado que o barómetro subia e descia mais de 10 mm. sem que haja mudanças de tempo (trovoada ou fortes chuvas). O forte compõe-se de: um recinto em pedra de cerca de 2,50 de altura e de dois baluartes nos ângulos NE e SO, guarnecidos com canhões Maxim e Hotchkiss. Quatro edifícios no interior: aposentos do comandante, estação telegráfica, caserna para as tropas e arsenal, que serve de paiol ao mesmo tempo. Tudo pobremente construído e coberto com zinco. Deve fazer nestes edifícios muito calor no Verão e frio bastante na estação seca. Os quartos do comandante nem sequer têm forro e a gente já tremia com frio em Abril … apesar de duas mantas na cama. Os indígenas do país são Matepuiris: o seu chefe (régulo) foi preso em 1894; eles formam uma mistura de todas as raças do sertão: Jáuas, Alolos (Boror), Lómuès, Tacuanes. A leste do forte, um pouco a montante do caminho que desce da serra para o sul, encontram-se ainda as ruínas duma antiga missão de São Francisco Xavier (Companhia de Jesus?); a vista desse lugar é realmente magnífica sobre as planícies do Lugela, o alto Boror, com o Zanga lá ao longe. Com bom tempo, se pode, até distinguir no extremo leste os picos de Namúli, cobertos geralmente de densíssimo nevoeiro. 28 de Julho: Até que enfim a testa da coluna aparece. O Major e demais oficiais montados apeiam-se. Com que febril impaciência temos esperado esta chegada. Vamos agora poder pormo-nos a caminho. Tarda-nos, sobretudo aos noviços como eu, de ver o que é a guerra, de receber o baptismo de fogo, de conhecer novas terras, nova gente, numa palavra: de ver, de aprender, de instruir-se. Tenho já tido, é verdade, várias boas ocasiões – quando foi do estado de sítio em Namacurra durante a guerra da Maganja (1897/8) e durante algumas viagens muito duras no alto Boror para a pacificação do prazo – de aprender muita coisa sobre as campanhas de África, pois os perigos não me faltaram, mas desta vez parece-se uma coisa um pouco diferente – uma coisa muito maior – uma guerra verdadeira, enfim contra dois grandes régulos: o Kouemba e o Mataca. Um no Lomué e o outro nos confins do Niassa … ninguém sabe ao certo, pois não temos mapas alguns. Dia de expectativa, de baldada expectativa, pois creio bem que não partiremos tão cedo. Faltam-nos, é facto, alguns carregadores e munições. Havia eu obtido do Major de seguir para Chirua, pois já conheço o caminho, tendo percorrido toda a região até Mecanhelas, com os meus sipaios em Março/Abril passado, e já levantado o itinerário quando houve contra-ordem, algumas horas mais tarde. Porquê? Não “xe xabe” debaixo de qual influência? Ignoro-o completamente, por agora, mais tarde talvez virá a saber-se. Chegou o Rafael Bívar, o célebre guerreiro da Zambézia e arrendatário dos prazos Mugovo e Goma. Foi já condecorado da Torre e Espada depois da campanha da Maganja e outras. Tive muito prazer em conhecê-lo. Como mais ancião e mais prático em guerras cafres, não posso duvidar que terei um bom mestre. Veio com uns 650 sipaios, todos já guerreiros antigos de fama. Na véspera ouço dizer que partiremos na segunda-feira. Parece-me difícil, pois não vejo nenhuma disposição para permitir-no-lo. Seremos provavelmente fixados amanhã, o eterno amanhã da terra. 29 de Julho: Depois do almoço o Major reuniu-nos todos em conselho, afim de estudar o plano de marcha da coluna, mapa nas mãos. Este mapa resume-se num croquis que eu fiz da região, quando da minha viagem no Mihanavi e no Chirua; croquis que comuniquei ao Major, com grande espanto dos oficiais presentes. Estou mesmo intimidado ao ver todos estes olhos apontados sobre mim quando respondo aos pedidos de esclarecimento que me estão sendo feitos. O Governo entregou ao Major cópia dum mapa a região dos lagos, isto é, a oeste do Chirua e do Niassa, cujos elementos foram tirados dumas várias cartas inglesas baseadas nas viagens do O´Neil (nota do Autor: consultar O´Neil, Henry E.) e outros, em 1890/91, mas deve-se presumir que não devem ser lá muito exactos, por a escala ser demasiadamente resumida e a falta completa de detalhes necessários. Há apenas neste mapa algumas coordenadas de confiança, mas tudo o resto é … terra incógnita … fora do itinerário percorrido por aqueles exploradores de então. Devemos, pois considerar esta região dos lagos como uma mancha branca que deveremos explorar “comme faire se pourra”, dizem os franceses. Este mapa em nada poderá servir para guiar a coluna. O Major fala, discute, cita nomes a propósito dum projecto de itinerário de marcha. Havendo exposto o seu plano, cada um é convidado a dar parte das suas ideias, de fazer a crítica que lhe parece … mas a crítica como?, pois ninguém (excepto eu) foi lá…? O que nos falta são guias certos. Mas em todo o caso sempre se decidiu a organização da coluna. Esta reunião apraz-me muito e muito me interessou. Isto prova que o Major não é como certos militares, enfatuados no seu posto, dos seus galões, e que não admitem que os outros possam ter pensamentos diversos dos deles. O croqui que forneci compreende só o itinerário daqui ao Chirua, pois o resto corresponde a uma região fora da nossa direcção; ele será pois apenas o suficiente para os primeiros dias de marcha; depois deveremos só contar com os guias indígenas –infelizmente e quantos perigos não podemos correr? Deveremos em primeiro lugar ir a Kouemba, mas ninguém sabe ao certo onde fica este régulo. Sabemos, quando muito, que reside ao norte dos picos Namúli, para NE do lado Chirua, uns 100 e tantos quilómetros. Senão arranjarmos guias do lado de Chirua, como faremos para lá ir e como saberemos finalmente se são as terras do Kouemba que alcançámos? Mas não antecipemos. A tarde chega, sem saber se partiremos amanhã. Tempo detestável desde quatro dias: chuva, frio (não se deve esquecer que nós estamos na estação invernal) e em cheio nas serras, com a vizinhança de Milange que nos dominam do lado norte, com os seus picos de 2.500 ou 3.000 metros. Cacimba e cacimba forte. Muitos constipados, já (incluindo eu) muita gente adoentada, pois os pretos sofrem bastante da mudança de clima. Mais um morto esta manhã. É o terceiro dos meus carregadores. Estes pobres pretos não têm quase nada para cobrir-se, infelizmente, por falta de cobertores disponíveis em Quelimane para todos. Não se pôde prever, talvez, que a temperatura seria tão baixa nesta época? Escrevi ontem ao Director da Companhia, como segue: “Pelo que vi nos armazéns parece-me que temos rancho para a tropa apenas para dois meses. Se o bacalhau e a bolacha – talvez o vinho – estão suficientes, todo resto (azeite, banha, café, açúcar, sal, etc.) não durará muito tempo. O abastecimento destes géneros e o dos medicamentos é absolutamente irrisório. Ora, se nós marchamos mais de três meses, como é provável, não chegaremos ao Mataca antes de Novembro, e então a coluna subsistirá com quê? Produtos da terra? …” 30 de Julho: Somos agora “ao completo”. Os retardatários (landins da Maganja) chegaram à tarde. Mais de 6.000 sipaios e carregadores estão reunidos nos arredores do forte. Que animação. Quantas passadas sobre um tão pequeno espaço. O golpe de vista é verdadeiramente pitoresco; pena é que não tenha um aparelho fotográfico. Infelizmente o meu está em conserto longe daqui. Teria sido o momento de ter debaixo da mão um Kodac ou um Verascopo qualquer – mesmo que fosse mau – pois é muito raro na vida de um homem ter ocasiões semelhantes do fotografar tais massas de indígenas de todas as regiões da Zambézia. No primeiro plano de frente, temos as três barracas dos soldados europeus; por detrás, perdendo-se quase no meio da floresta, o acampamento dos sipaios e carregadores do Boror e da Maganja, à esquerda o armazém, depósito de víveres, as cavalariças, as palhotas dos oficiais; à direita as maçassas de numerosos sipaios; na parte posterior, de frente aos picos de Milange, os sipaios da C.P. (nota do Autor: Companhia da Zambézia). Recebemos as nossas munições: 40 cartuchos por homem (sipaio); os carregadores as suas cargas (rancho – arroz). Parece-me a mim, profano, que 40 cartucho é muito pouco. Mas que fazer? Não há mais. Teme-se que os pretos os percam, que os gastem estupidamente nos tiroteios ou, então, pensa-se numa nova distribuição mais tarde. Tenho já notado que não ficava nenhum saco de arroz em depósito e receio muito que hajam mais tarde surpresas desagradáveis num futuro muito próximo. Deus queira que me engane, mas a minha experiência africana me ensinou que um preto pode comer, apesar das privações que pode suportar quando for preciso, com um estoicismo extraordinário, e o cálculo é fácil de fazer-se: um litro de arroz ou de farinha qualquer por dia. O previsto não é o bastante. Talvez o Major conte com um fornecimento do lado dos ingleses ou conta ele assegurar o “poço” (nota do Autor: alimento) dos carregadores com razias em terras inimigas? Mas que grande “álea” de contar sobre isto de forma certa? O grande problema de todas as expedições coloniais em África foi sempre o abastecimento. Finalmente, os nossos homens recebem cinco dias de víveres; justo o tempo de chegar à Chirua. Depois … depois a gente se governará. Cinco dias de “poço” e 40 cartuchos. Vamos em guerra ou vamos brincar? Quando deixei Namacurra em Fevereiro último para explorar o Alto Boror e delimitá-lo, com Sebastião, tinha previsto a mais para cerca de cem homens, todo o suficiente para um bom terço do tempo e ainda tinha eu a certeza de poder encontrar “in loco” todo o necessário (no Matias) caso, naturalmente, não me acontecesse nada de desastroso. Não posso, não pensar que o Governo terá podido tomar as maiores precauções e que fez as reservas necessárias em qualquer parte. Deus queira que o meu raciocínio seja justo! Mas tudo bem reflectido, vou ainda falar com o Major, pois não estou sossegado. É preciso de toda a Meira governar-se. Eis o que vou propor a Sua Ex.ª: reenviar imediatamente os empregados Sebastião e Manuel ao Alto Boror, para fazer imediatamente o recenseamento, receber imediatamente o mussoco em géneros logo depois. Como os indígenas sabem que as tropas do “REI” estão para vir para baixo mais tarde, farão eles todo o possível para pagar depressa. Receber o mussoco – de preferência em farinha já pilada, de mais fácil transporte. Transportá-la a Milange o mais cedo possível. Tão depressa pensado, tão depressa feito. O Major aceita esta minha sugestão. Peço-lhe a requisição necessária para as 3.000 panjas, afim de enviá-la ao Administrador do Alto Boror, o meu velho amigo e mestre Barbosa. Escrevo logo ao Barbosa para informá-lo desta decisão e pedir-lhe de dar as suas ordens aos muenes em consequência, dando-lhe cópia das ordens que deixei ao Sebastião, para ele as mandar cumprir. As 3.000 panjas deverão estar em Milange pelos primeiros dias de Outubro. Aviso também o Sr. Eigenmann, Director da Companhia, da minha “entente” com o Major. Creio que esta medida de simples prudência não será inútil. Quando mesmo Sua Ex.ª tivesse a certeza de arranjar mantimentos para os nossos carregadores no Kouemba, sem experimentar combates prolongados, teremos nós a certeza que sucederá o mesmo no Mataca? Não seria possível que na região do Niassa encontrássemos negreiros zanzibaritas de alta marca, que obrigariam os régulos daí a levantarem-se contra nós e de nos dar que fazer. Estes negreiros são geralmente de origem árabe e dotados duma certa coragem, capazes de comandar valorosamente hordas de jáuas, de conduzi-las ao assalto, como os landins, com o seu fanatismo muçulmano; ora isto, inevitavelmente, atrasaria ainda a nossa campanha até à estação quente, com o risco de ficarmos entalados por falta de víveres, os nossos fracos recursos mal chegando por um tempo ridiculamente fraco. Somos avisados à mesa que a partida terá lugar amanhã, pelas sete horas. Enfim. A ordem de marcha fica assim constituída: À vanguarda, os sipaios do Boror, apoiada à direita com os sipaios do Bívar (650) e à esquerda, pelos da Maganja, (1.400 aproximadamente), com Cunha (Alferes). À retaguarda: sipaios do Marral, com a cavalaria. No meio: artilharia e infantaria, protegida em todas as faces pelos sipaios. O comboio fica no meio das tropas europeias, logo depois da segunda secção de infantaria. Algumas palavras a respeito das forças europeias: há uma companhia de infantaria (140 soldados); uma bateria de artilharia, com 6 peças e 60 soldados; um pelotão de cavalaria com 20 soldados; diversas praças de intendência, de enfermaria, etc., comandados por 2 capitães e 20 e tantos oficiais diversos. Há também 2 médicos e 1 veterinário. Ao todo: 230 praças e 25 oficiais e mais 50 angolas. O uniforme é o mesmo para todas as armas: casaco azul-escuro, contra-epaulette negra, insígnia da arma no colarinho, galões nas mangas, calça cinzento-azul com banda encarnada para a artilharia e cavalaria; quépi (barretina) azul-escuro, com paramento encarnado, com número e insígnias de fronte ou um chapéu de feltro no género bóer, muito largo com uma roseta ao lado. Os soldados não trazem geralmente o casaco mas uma espécie de chandail de lã muito cómodo e higiénico, com as calças de caqui ou de brim. O comboio será composto de 2.400 homens, dos quais 320 para as munições. Nesta cifra a Companhia do Boror fornece 1260 acompanhados por um empregado europeu, o Bastos e um mozungo, o Romão debaixo de minhas ordens quando não estão em marcha. A arma da infantaria é a Kropatcheck, a da cavalaria e artilharia a carabina Mannlicher; as peças consistem em 2 Canet e Gruzon de tiro rápido. Ao comandante fica adjunto um alferes como ajudante de ordens. No Estado-Maior, o tenente de artilharia A.A. Terry, rapaz de alto valor quanto modesto e o tenente Pinto da Rocha, da cavalaria. O rancho do soldado é tudo que há de mais frugal e não creio que satisfaria soldados estrangeiros. O bacalhau com o arroz é a base principal da comida de manhã como de tarde. É com uma comida tão simples que o soldado português cumpre milagres ou prodígios. O dos oficiais é um pouco melhor, mas será por pouco tempo, pois apenas alguns dias de marcha ele tornou-se o mesmo que o dos soldados. Confesso que esta comida, com a qual não estou acostumado, me custa muito. O azeite, sobretudo, é muito forte e me causa nos primeiros dias náuseas insuperáveis. Mas que remédio senão aguentar-se? O vinho é abundante e razoável, mas as tropas devem considerar esta bebida como um presente dos deuses, pois beber vinho em campanha e tão longe, em África, parece uma aposta. Não há pão, só biscoitos (bolacha) que o substitui perfeitamente. Não se deve queixar e, pelo contrário, deve-se considerar como muito felizes se nós pudéssemos estar assegurados duma tal comida durante toda a campanha. Valha-nos Deus. 1 de Agosto: Partida às sete horas, com temperatura muito agradável. Estou na frente. Costeamos durante algum tempo os contra-fortes da serra Tumbini e entramos pouco depois na planície; nada de notável. Parada às 11 horas para acampar. O grosso da coluna chega só às 4 horas. A marcha não é fácil para os soldados europeus, ela é mesmo penosa. O almoço consiste num pedaço de carne cozida, fria e de um biscoito. Felizmente que eu pude arranjar alguma coisa pelas 12 horas, na incerteza da hora duma refeição eventual. A gente consola-se na esperança dum jantar mais substancial. Coitados. Mas o que vejo quando o toque nos chama à “messe” (“messe” puramente imaginária já se vê): uma singular papa de arroz com bacalhau, verdadeira massa inqualificável, que me enjoaria se fosse algures, tão mal cheira e apresenta-se pior ainda. E eu não sou o único a estar aflito. Todos os oficiais que estão cheios de fome, pois têm a barriga vazia desde o café da manhã, fazem uma cara tremenda mas, finalmente, fazem boa figura contra má fortuna. Enquanto a mim, é-me perfeitamente impossível de engolir este petisco, por mais que eu queira, pois nada quer passar. Consigo safar-me no fim de alguns minutos e remexendo nas minhas bagagens, entrego ao meu moleque uma lata de conservas da reserva que guardei religiosamente da minha viagem do Boror, para casos de grave emergência. Pude comprar também em Chilomo algumas latas inglesas, que me serão com certeza duma grande ajuda em caso de doença. Tenho meditado longamente, antes de adormecer neste famoso almoço/jantar; creio mesmo que sonhei com papas e bacalhau, num inferno cafreal, onde todos os sapendas me giravam à roda, numa sarabanda diabólica. Hum. A nossa situação alimentar, se principiar assim, não será alegre daqui a pouco, se se pode julgar pelas primícias já tão penosas. Os receios que expus ao Major parecem verificar-se mais rapidamente do que eu pensava. Não iremos longe assim, com uma tal comida. Há já bastantes praças doentes, que não poderão suportar um tal regime. Quer-se, francamente, economizar sobre o rancho? Parece que sim, pois temos uns bois que não se quer matar. Serão reservados para mais tarde? Poderia, ao menos, fazer-se um pouco de sopa para os homens cansados. Uma comida quente é sempre recebida com delícias por quem não tem apetite ou que tem o estômago atrapalhado e na impossibilidade de engolir o prato do dia do “maitre coq” da coluna. 2 de Agosto: Saímos às 6H30. Acampamos perto da serra Toundo às 8H30. De manhã cedo os dois médicos foram falar ao Major para rogá-lo de melhorar o rancho. Não sei quais as razões que eles têm invocado para fazer mudar radicalmente o “menu”, mas desta vez, S. Exa. O cozinheiro merece todos os louvores, pois o almoço foi excelente, comparado com o de ontem, tão típico que era de chorar. Os doutores servem para muito, fora dos seus talentos medicais, pois podem fazer mudar as ideias dum chefe sobre uma determinação pouco sensata e estou certo que todos os oficiais têm tido a mesma ideia que eu: agradecer aos nossos médicos a sua intervenção tão oportuna. 3 de Agosto: Acampados a umas 2H30 de Toundo. 4 de Agosto: Acampados ao pé da serra Maozi. Indo um pouco à frente, encontro os oficiais encarregados da delimitação da fronteira anglo-portuguesa. Já conhecia estes cavalheiros, que havia encontrado em Milange em Abril passado; acolhimento encantador. Interessei-me muito nos seus trabalhos, pois sempre tive uma verdadeira paixão para os trabalhos topográficos. Os peritos eram os Srs. 1º Tenente da Armada Ivens Ferraz e 2º Tenente da Armada Conde da Ponte, aos quais era adjunto o Capitão Ferreira, se não me engano. 5 de Agosto: Aproximamo-nos do lago Chirua; acampamento habitual. 6 de Agosto: Pudemos ver o lago entre duas serras, logo depois de ter deixado o nosso acampamento. Vamos em direcção a NE. Quando atingimos a planície, descobre-se o lago muito bem. Deixando a aldeia de Boma, mudamos subitamente de país; não há mais serras altas, não mais belos rios ou mesmo riachos com água clara, não há paisagens mais agradáveis. Tudo é triste, sombrio, duma monotonia desesperada. Algumas colinas de rochedos, depois uma planície imensa, coberta duma palha espessa, muito alta, e o lago, lá ao longe, simples linha azulada à esquerda, nada mais. Paisagem pobre, desolada. Marcha penosa, pois não há a menor sombra e o Sol morde duramente pelas 10 horas. Além disso não há água, a não ser uma água salobra, quase salgada, difícil de beber para os europeus. Por isso a etapa deve ser muito grande: uns 25 quilómetros antes de chegar a encontrar uma água razoável, para acampar. Os pobres soldados chegam estafados, numerosos doentes. 7 de Agosto: Mais um dia de penosa e longa etapa. Sem água nas paragens. As maçadas começam com os carregadores. Uns 200 fugiram abandonando os seus volumes. Não havia já predito isto? E porque não se assegurou o “poço” destes pobres diabos, que ficaram sem comida ontem e hoje? Aconselharam-nos de raziarem onde encontrassem géneros. É fácil dizer, mas é preciso sair do acampamento, afastar-se nas povoações distantes e correr o risco de serem corridos para não dizer mais. Muitos não têm essa coragem e quantos já estão enfraquecidos? Como conclusão destas fugas, o almoço tem lugar só às 2 horas. 8 de Agosto: Acampamos perto do rio Chimoazi, em Mecanhelas. Como ficámos na proximidade do inimigo, fazemos um sanzoro (fortificação em uso na Zambézia), feita com paus entrelaçados, duma altura variável de 1,5 a 2 metros, conforme as facilidades que se encontrarem. Este sanzoro é acabado às 5 horas. Poderemos nós dormir tranquilos, pois estamos suficientemente abrigados: apesar de sumária e pouco elevada, esta protecção é bastante prática. Pelas 6 horas chega o comboio com 2.000 carregadores; como não há bastante espaço no recinto do sanzoro, uma boa parte deles dormirão fora do recinto. 9 de Agosto: Pela tarde chega ao nosso conhecimento que o inimigo se aproxima. Tomamos em consequência as nossas disposições: os canhões estão carregados, as secções de infantaria vão sendo colocadas na sua zona de combate, os sipaios deitam-se junto ao sanzoro, prontos a todas as eventualidades. Enquanto a mim, adormeço muito sossegadamente, pois não creio num ataque para esta noite. Pelas 3 horas da manhã estrondeia o toque de alerta. Acordo de sobressalto. O que será? Não deve ser o inimigo, pois o toque não seria o que ouvi. A toda a pressa levanto-me e corro a interrogar o primeiro oficial que encontro. Não, não há perigo por enquanto. É unicamente para nos meter em defesa, pois as sentinelas receiam qualquer coisa. As disposições de combate são imediatamente tomadas. Em breve toda a gente está no seu posto e … esperamos. Esperamos até à vinda da madrugada. Vamos, não será desta vez. E cada um de retomar as suas posições primitivas: os pretos perto das suas fogueiras já extintas, tremendo de frio, os oficiais e praças debaixo de suas tendas para tentar repousar. O dia é já alto e não tememos uma surpresa. Os sipaios aventuram-se já fora do recinto e dispersam-se para ir buscar a sua comida, onde puderem. Durante os movimentos da preparação do assalto, houve um pequeno movimento de pânico por parte dos carregadores que, dormindo fora, queriam naturalmente buscar abrigo no recinto e também de alguns sipaios que já se preparavam para atirar sobre um inimigo imaginário. Mas tudo entrou na calma pouco tempo depois do alerta. Frio durante a noite, pois somos a uns 550 metros de altitude. Sem lume muito sofrem os pretos.


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Nota: Atendendo a ser um relatório muito extenso, subdividiu-se o mesmo, pelo que continua na próxima mensagem.


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* - Já fichado.
** - A abrir ficha.


 
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RECORDANDO HISTÓRIAS E LENDAS DE ÁFRICA



Yaa Asantwea, a Rainha Ashanti - (Edweso (actual Gana), entre 1840/1860 - Seychelles, 1921) - A formação do Reino ashanti remonta a 1670, altura em que Osei Tutu unificou os estados Akan e liderou uma revolta destes contra os seus dominadores de então, os Denkyra. Osei Tutu tornou-se, assim, no primeiro "asentehene" (rei, líder) ashanti e, para melhor consolidar a união do reino, para além da conquista material da libertação do jugo dos Denkyra criou também, inteligentemente, uma unidade espiritual, mística, como que mágico-religiosa que se baseou, em conluio com o seu feiticeiro Okomfo Anokye, no nascimento da lenda do "Banco Dourado".



"Banco Dourado", símbolo espiritual da nação ashanti




Pormenor do "Banco Dourado" com alguns artefactos de ouro



Assentava na lenda que, em Coomassie(1), a nova capital ashanti, um Trono Dourado descera dos céus, no meio duma tempestade de areia e que baixara, lentamente, até junto de Osei Tutu tornando-o, assim, o Rei ashanti. Todos os grandes do Reino acataram a lenda, bem como o povo e o Trono passou a ser o bem mais sagrado dos ashantis, atendendo que era o símbolo supremo da unidade espiritual. 




O império ashanti cresceu com o segundo asentehene Opoku Ware (morto em 1750), que alargou as fronteiras ashantis, ao anexar territórios vizinhos. Osei Bonsu (1779/1824), o sétimo asentehene, conquista novos territórios atingindo o oceano atlântico, depois de derrotar e submeter p«os povos fante. Os fante eram os que faziam a ligação comercial dos produtos que se permutavam entre os colonos britânicos, instalados a costa e os ashantis, no interior. Ao quebrarem esse equilíbrio os ashanti conflituaram com os britânicos e, como um mal nunca vem só, também o facto de nunca terem dominado no pleno os povos que conquistavam, tornavam-se vulneráveis a guerras intestinas.



Sendo os ashantis esclavagistas e os britânicos a desenvolverem a política de combate ao mesmo fácil se tornou o aumento de conflitualidade entre estas duas forças. Criada a Colónia da Costa do Ouro britânica (2), logo no princípio do século XIX, em 1830 é estabelecida uma trégua entre estes e os ashanti, que durou cerca de trinta anos. Por volta de 1860 reacendem-se de novo os conflitos até que, em 1874, os britânicos liderados por Garnte Wolseley invadem a nação ashanti, tomam Kumasi e escolhem o asentehene que melhor entendem.

Bandeira ashanti, com o Banco Dourado no centro.



Começa a surgir a figura de Yaa Asentwea, oriunda de Esweso (uma das regiões ashantis) que era a mãe e principal conselheira do edwesohene (governante local) Nana Afrane Kuma. Tendo estalado uma guerra civil no Reino ashanti, em 1884, que teve a ver com a nomeação do novo asantehene por haver dois candidatos ao título, Yaa Asentwea, tal como o seu filho optou por um deles - Prempeth I. Após dez anos de lutas intestinas acabaram por levar esta facção ao trono (1894) e, neste mesmo ano, os britânicos quiseram instalar em Kumasi, um seu representante bem como construir um forte. Prempeh I recusou fornecer tais autorizações e, em 1896, os britânicos resolveram o problema invadindo Kumasi e os seus territóriuos adjacentes, no que foram até ajudados por ashantis que não aceitavam a liderança de Prempeth I.



Este não teve outro remédio senão aceitar todas as condições que os vencedores lhe impuseram mas, quando recusou pagar aos britânicos os custos da expedição enviada contra ele, acabou exilado para o arquipélago das Seychelles, juntamente com outros grandes, entre os quais se incluía Nana Aframe Kuma, o filho de Yaa Asentwea.



Com a liderança ashanti decapitada, pois a própria mãe de Prempeth I (e que era a Rainha-Mãe)também foi exilada, começa a sobressair na resistência surda o nome de Yaa Asentwea, uma mulher que votava aos britânicos um ódio surdo não só pela decapitação da liderança ashanti, como também por terem exilado o seu filho. A sua liderança na comunidade ashanti acaba aceite.



Em 25 de Março de 1900 o Governador britânico da Costa do Ouro, Frederik Hogson, visita Kumasi e, três dias mais tarde, ao falar perante os representantes ashantis  exigiu o pagamento das expedições britãnicas, bem como lhe fosse presente o "Banco Dourado", para se sentar nele. Foi um erro revelador duma falta de tacto diplomático, ou talvez não (3). Seja como for acabou por estalar a "Revolta do Banco Dourado" (25 de Abril), e durante dois meses os britânicos ficaram cercados no forte Kumasi, aguardando a chegada de reforços que não chegavam, por as linhas do telégrafo terem sido cortadas pelos revoltosos. A 23 de Junho um grupo de britânicos conseguiu romper o cerco e atingir a costa atlântica duas semanas mais tarde, o que denunciava que a revolta ashanti estava enfranquecida.
 

Enviada uma força expedicionária de cerca de 1.500 homens, os britânicos libertam os seus compatriotas que estavam cercados em Kumasi e, nos três meses seguintes, combatem focos de guerrilha, pois a resistência ashanti, liderada por Yaa Asentwea, mantinha-se activa. Em princípios de Setembro desse mesmo ano de 1900, uma força britânica parte para Edweso, para acabar de vez com os poucos ashantis que ainda resistiam e prender a Rainha revoltosa.



A 30 de Setembro são derrotados, num combate sangrento, os últimos combatentes ashantis que lutavam pela sua identidade cultural. Yaa Asentwea, símbolo da resistência, consegue fugir mas, alguns dias mais tarde, caem por terra as aspirações dos últimos ashantis livres, na floresta de Ahafu, com a sua prisão e dos seus últimos líderes. Ao ser presa, cuspiu na face do oficial britânico. Era o canto do cisne ashanti.



Yaa Asentwea



Yaa Asentwea acabou deportada para as ilhas Seychelles, onde se juntou ao seu filho e à restante comunidade ashanti aí forçadamente exilada. Aí ainda viveu mais vinte anos a última líder da revolta ashanti, a Rainha que, reza lenda e (ainda hoje) a tradição oral que era "a mulher-guerreira que transportava uma espingarda e uma espada durante os combates" e que, na realidade, nunca entregou o "Banco Dourado" (4).



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(1) Coomassie - é a actual cidade de Kumasi, situada no centro da República do Gana, em pleno território ashanti. Terá sido fundada por volta de finais do século XVII.



(2) - A Costa do Ouro foi inicialmente explorada pelos portugueses que aí utilizaram uma base para o seu tráfico de escravos que comerciavam com os povos litorais. Para tal construíram o Forte de São João da Mina (1482), que era um entreposto comercial de escravos que enviam para o Brasil, principalmente.




Forte de São João da Mina



Até finais do século XV os portugueses dominaram o território que, depois passou por diversas mãos europeias até que, no princípio do século XIX os britânicos criaram ali a sua Colónia da Costa do Ouro, que viria a dar origem à actual República do Gana (06/03/1957).



(3) Há quem entenda que foi uma medida provocatória propositada, para fazer saltar a facção ashanti que se rebelava surdamente contra a presença britânica. Efectivamente os britânicos tinham, na sua posse, uma lista de nomes de rebeldes, onde se englobava o de Yaa Asentwene. Conhecedores que eram dos costumes e tradições ashantis sabiam que a exigência de se sentarem no "Banco Dourado" iria acicatar ânimos e, assim, justificarem uma nova intervenção na comunidade, já de si fraccionada duma guerra civil, destruindo os restantes focos de opositores à fixação definitiva dos britânicos.



(4) O "Banco Dourado" bem como alguns artesanatos de ouro acabaram por serem descobertos acidentalmente, em 1920, por um grupo de trabalhadores africanos, quando trabalhavam na abertura duma estrada. Os britânicos conseguiram salvar esse grupo de trabalhadores de serem executados por costume ashanti, atendendo a que aqueles tinham retirado o revestimento de ouro do banco e porque o "Banco Dourado" era sagrado demais para ser manipulado por estranhos. Em 1935, quando os britânicos autorizaram Prempeth I  a regressar do exílio das Seychelles, sentou-se neste banco para ser devidamente reentronizado.




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Sika Duro (ou Sakawa) - Ritual feiticeiro no Gana, que serve para se atingir a riqueza em pouco tempo. Dá pelo nome de Sika Duro ou popularmente conhecido por "Mogya sika aduro" ou "Blood Money Medicine" ("feitiço de dinheiro de sangue"), pois os pretendentes a ficarem ricos recorrem a um feiticeiro destas "artes" que, através de poderes espirituais com rituais próprios, provocam ferimentos ou a morte dalguém, cujos bens reverterão para o cliente que os contratou. O termo Sika Duro terá sido originado com base na palavra haussa "sakaa-waa" que significa "colocar algo".



Os rituais do feiticeiro variam consoante a gula de enriquecer do cliente. Podem ser apenas o de levar a vítima a cometer actos de desregulação social (provocar-lhe o andar nu na rua, por exemplo) até à mutilação de partes do corpo ou mesmo a sua morte. O pretendente a receber o dinheiro da vítima procura o feiticeiro especialista nesta temática, submete-se a uns rituais para comprovar o seu interesse na prossecução do feitiço e, depois o  "feiticeiro", através de poderes sobrenaturais que possui, interfere com a vítima indicada pelo seu cliente.




Sessão de sika duro



Não consegui visionar o filme ganês "Sika hey" cujo guião, segundo li, se centra na história duma mulher que contrata um feiticeiro destas artes para provocar a morte do marido e do filho, o que vem a obter. Com o dinheiro da herança enriquece, mas os  fantasmas dos falecidos aparecem-lhe e provocam-lhe pesadelos e remorsos que acabam por a levar ao suicídio.




O "sika duro" serve de pretexto, na vida real, para o aparecimento de gangues jovens que cometem homicídios por encomenda, sob a capa deste estúpido ritual e aterrorizando as comunidades locais. As autoridades ganesas promovem a repressão destes. Presentemente surgiu o "sika duro" via internet, em que qualquer um de nós pode contratar um feiticeiro destas "artes" e, através de poderes psíquicos ele consegue transferir dinheiro da conta da vítima para a conta do seu cliente. Mais sofisticado, pois já não envolve humilhações, mutilações ou  mortes. Benefícios da tecnologia, direi eu. Sobre este tema pode-se ver, entre outros, uma reportagem de cerca de 20 minutos em http://motherboard.vice.com/2011/4/5/the-sakawa-boys-inside-the-bizarre-criminal-world-of-ghana


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LEITURAS


África Eterna - testemunhos de um tempo que não se esquece, da Oficina do Livro, Lisboa, 2012, 218 págs. 



Trata-se dum repositório de testemunhos de 50 pessoas que passaram pelo Ultramar português e lá deixaram alguns anos das suas vidas. Coordenado por Catarina Coelho, Ricardo J.Rodrigues, Rita Penedos Duarte e Susana Lima, juntamente com mais oito autores, fazem uma recolha sintetizada das memórias de meia centena de pessoas que viveram nas Áfricas, com predominância para os que estiveram em Angola, alguns em Moçambique e dois testemunhos vivenciais de São Tomé e Príncipe.

 
São histórias irrelevantes no contexto global do País, mas que assumem a sua importância no legado familiar dessas mesmas pessoas que viveram para as contar. No entanto, atendendo à sintetização das histórias, condensadas em 3 a 4 páginas e mesmo estas preenchidas com fotografias dos álbuns de família, nada de relevante se colhe deste livro, cuja leitura me entediou.


Virado para o mercado da saudade, este livro nem traz novidades nenhumas e é apenas para dizer que 12 pessoas juntaram-se, ouviram umas quantas histórias repetitivas doutras 50 e publicaram um livro. Mais nada. Quem perdeu foi o Ambiente com o abate de árvores que teve que se fazer para se arranjar o papel em que o dito livro foi imprimido.


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Marca d´África, de Luiza Bobone, das Edições Tenacitas, Coimbra, 2012, 242 págs.


Livro de memórias de Luiza Pinto Basto Bobone, uma auto-biografia centrada principalmente no tempo em que viveu em Moçambique (1957/1975) ao acompanhar o seu esposo que para lá foi colocado a desempenhar cargos de administração em empresas da Zambézia.

Jaime Nogueira Pinto refere nesse livro, sobre a Autora: " Uma mulher jovem, bonita e elegante da sociedade lisboeta saía do seu casulo para se encontrar no meio da África profunda, num África que ainda tinha febres, rios caudalosos e "indígenas". Era preciso coragem e determinação para enfrentar essa nova realidade e aí criar família, vencendo os preconceitos existentes."


 
Só mesmo por elegância da sua escrita e eventual amizade à Autora é que Jaime Nogueira Pinto (a quem reconheço profundidade intelectual) escreveu esta tirada que acho um pouco (para não dizer muito) surrealista. Quem lê isto fica com a sensação que estamos perante uma mulher intrépida, que enfrentou a selva, os animais ferozes, quiçá até canibais e outros perigos que tais. Tenhamos um pouco de bom senso e não insultemos a memória das mulheres que, essas sim, entraram nas florestas do desconhecimento africano quem nem furões, abriram clareiras de luz, rasgaram novas fronteiras onde a civilização entrava e obrigavam a recuar o obscurantismo.  Com inúmeros erros, com preconceitos muitas vezes, destruindo legados africanos ancestrais, também, mas percussoras dum mundo novo, dum mundo inimigo da imutabilidade, que não ficava parado.

Luiza Bobone não entra neste escol feminino. Lamento, mas falo com conhecimento de causa da época em que a Autora lá esteve, do meio social em que viveu e do terreno que ela pisou. O livro em si é desenchabido, historiando o seu percurso em Portugal até que se casou, após o que ruma para Moçambique onde fica até aos alvores da independência e o seu regresso e reintegração. Pode servir (e serve) como memorial familiar, dou de barato que se leia o mesmo para ver como a nata colateral da burguesia colonial preenchia os seus tempos do nada fazerem, através dos relatos das patuscadas, dos bailes, das viagens aos territórios vizinhos, Vossa Excelência para cá, Sr. Dr. Hastings Banda para lá, as caçadas, as idas às praias, enfim...

Branqueia muito o colonialismo português, querendo até dar um toque de rebeldia como, a título exemplificativo, escreve: "A minha experiência com o apartheid é que foi terrível! Estava sempre distraidíssima e tinha uma atracção especial para escolher sempre as filas, os bancos, os elevadores para os "non white". Devia ser por falta de treino porque em Moçambique havia uma grande integração entre as duas raças, apesar de muita gente dizer o contrária." (Pág. 194). Das duas , três: ou escreveu isto por ironia ou, então, por estar completamente desfazada  da realidade social moçambicana. Inclino-me para a segunda hipótese.

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A Balada do Ultramar, de Manuel Acácio, Oficina do Livro, 2009, 221 págs.



Um romance  que percorre a descolonização angolana, com todas as marcas negativas da bestialidade humana a virem ao de cima e que ali imperou. História duma saga familiar de pessoas que para lá foram com ideia de aí ficarem, pessoas que se angolonizaram ao seu modo e que os ventos da História atiraram-nas de sopetão de novo para a antiga metrópole, obrigando-as a readaptarem-se de novo e a sentirem-se estranhos em terra própria com o estigma social de serem "retornados".



É um romance ligeiro, que se lê bem, com agrado, retratando factos históricos conjugados com a ficção, pois o mesmo é  escrito não só por quem sabe escrever como também por quem sabe do que fala. Por isso recomendo a sua aquisição e leitura. 


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POESIA

 

Ruy Cinatti - Ia fazer uma sintetização de Ruy Cinatti, esse poeta que tanto amou Timor. Mas, ao efectuar leituras sobre o mesmo, quer em livros quer na rede, calhou de tropeçar na leitura dum blogue que aborda este mesmo tema, duma maneira tão interessante que desisti de apresentar trabalho próprio e recomendar antes a leitura daquele texto. Trata-se do blogue "chuviscos.blogspot.pt" que, em 01/07/2012, o Autor do mesmo, José Gomes, fez um excelente trabalho resumido sobre este poeta, subordinado ao título "Ruy Cinatti, o poeta que amou Timor".



Assim, tudo o que eu pudesse escrever sobre o binómio Ruy Cinatti/Timor seria um pouco como chover no molhado, pelo que, enviando os meus cumprimentos ao Autor José Gomes (que não conheço), pelo seu trabalho, recomendo a leitura do mesmo.  


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MÚSICA


Leonard Cohen - Outro dos meus cantautores favoritos é este intérprete canadiano, nascido em Montreal, em 1931. Poeta, edita o seu primeiro livro em 1956 ("Vamos comparar mitologias") a que se seguirão outros, quer de poesia quer de novelas. A sua actividade literária leva-o a ser-lhe atribuído o prémio Príncipe das Astúrias, em Oviedo, em Outubro do ano passado.



"Aleluia"



Em 1967 lança, nos Estados Unidos, o seu primeiro disco "Songs of Leonard Cohen" e, até aos dias de hoje, a sua actividade musical, quer em estúdio quer em concertos, nunca mais parou. No seu estilo musical melancólico, com timbre bem personalizado, desenvolve uma visão muito particular do mundo que o rodeia, quase que declamada pela sua voz grave. Mantém sempre um tom intimista, prudente e confidencial, mesmo quando aborda temas mais elaborados.  



"Dance to the end of love"



Angustiado e enigmático, é um buscador permanente de respostas para questões espirituais que o atormentam e, após um retiro, acaba ordenado monge budista (1996). Este ano actuará em Portugal pela quarta vez, sendo o nosso um País que, desde 2008, está no seu roteiro de espectáculos.


 
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PORQUE SÓ HÁ UM PLANETA





Atenção: Vídeo com imagens chocantes


 
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Foram reprovados,  no Parlamento Português, os projectos de lei apresentados pelo Bloco de Esquerda e Partido  Ecologista os Verdes que tendiam a proibir o apoio institucional à realização de espectáculos que infligissem sofrimento físico, psíquico ou que provocassem a morte de animais, bem como a proibir a apresentação de espectáculos tauromáticos na televisão pública. Lamentável, este chumbo.


Que contou com os votos do PCP ao lado do PSD e CDS/PP. Os comunistas, que se dizem defensores dos valores da esquerda humanitária, de mão dada com os partidos conservadores da direita. Nem sequer votaram ao lado dos Verdes, que são o seu parceiro de coligação. Lamentável, esta demagogia.




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Hoje (13/07) vi três andorinhas a sobrevoarem a minha casa. O que tem isso de especial? Porque foi a primeira vez, este ano, que vi andorinhas. Infelizmente, começa a tornar-se lenda a referência a que "as andorinhas anunciam a Primavera". Mesmo assim, posso considerar-me um pouco feliz. Não sei se os nossos netos ainda verão andorinhas em Portugal.





João Maria Tudela
"Ao vento e às andorinhas"



Como homenagem às três andorinhas que hoje me fizeram sorrir e lembrar os meus felizes e longínquos tempos de infância (lembro-me delas nidificarem no beiral da casa dos meus pais, que hoje ainda habito) aqui reproduzo o tema "Ao vento e às andorinha" interpretado por João Maria Tudela, no festival da RTP de 1968.


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ACONTECEU


Afeganistão - Uma mulher foi executada sumariamente, depois de ter sido acusada e julgada por adultério por um tribunal talibã, que nem sequer ouviu a sua versão e a condenou à morte, tudo isto no espaço de uma hora. Foi de imediato assassinada a tiro de espingarda metralhadora, tendo o momento sido registado em telemóvel. (DN Globo, 10/07)



Momento do assassinato


Das duas uma: ou estou surdo e tenho que ir a uma consulta de otorrino tratar-me ou ainda não ouvi nenhum líder religioso muçulmano condenar mais esta violação elementar de respeito pela dignidade da condição de mulher e da vida humana. É que já cansa tanta cobardia.


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Declarações de interesse


Os textos são escritos recusando as normas no Novo Acordo Ortográfico.


As referências aos produtos são incompatíveis com publicidade comercial.


As fotografias e os vídeos foram retirados do Google Imagem e do Youtube.


 
E agora, hambanine.

domingo, 8 de julho de 2012

Isabella Bird



VIAJANTES, AVENTUREIROS E EXPLORADORES


Isabella Lucy Bird - (Boroughbridge (Inglaterra), 15/10/1831 - Edimburgo, 07/10/1904) - Viajante e escritora de literatura de viagens. Talvez seja mais fácil referir dos locais que esta mulher não percorreu dos que apontar aqueles que foi, tal foi a sua fome de viajante à escala planetária. Filha dum pastor religioso passou grande parte da sua infância e adolescência a acompanhar a família de paróquia em paróquia, no seu País natal.





Desde muito jovem Isabella Bird queixava-se, principalmente, de enxaquecas e de dores da coluna, se bem que haja quem lhe atribuísse esses males a factores mais psicológicos que físicos pois, testemunhos contemporâneos dela, referem que quando ela fazia o que queria, nunca se queixava de nada. Discutível. Aos vinte e três anos realiza a sua primeira viagem, aos Estados Unidos e Canadá (na zona dos Grandes Lagos), depois do seu pai lhe ter financiado a mesma. Nesta viagem, realizada em 1854, viaja pelo rio Mississípi, Nova Escócia, sobe o rio St. Lawrence, percorre os Grandes Lagos e vai até Chicago. "... Percorremos três milhas no vapor e atracámos numa clareira onde se situava a pequena colónia de Daenport. Tínhamos descido o Mississípi, o mais poderoso dos rios, meia milha de largura e dezassete mil milhas desde a nascente e estávamos no Oeste distante. Vagões com toldos brancos, bois com peles grossas e jugos pesados, corcéis enérgicos com selas altas e pontiagudas, presos a troncos de árvores, a enxotar as moscas com as caudas; emigrantes em carroças azuis a perguntarem a si mesmos se este era o El Dorado dos seus sonhos; armas, equipamento e bagagem rodeavam a casa ou abrigo onde íamos tomar o pequeno-almoço. A maior parte dos nossos companheiros iam para o Nebraska, Oregão e Utah, os distritos mais distantes onde dificilmente chegariam, com os seus animais lentos, antes de qautro meses; entretanto estavam expostos aos ataques dos sioux, dos comanches ou dos blakfeet. ..." Fixará as suas impressões no livro "Uma inglesa na América" (1856).

Durante as duas décadas seguintes não efectua viagens para fora da Grã-Bretanha até que, em 1872, liberta-se da claustrofobia ilhéu e, aproveitando um conselho médico para combater as suas dores de coluna e outros males físicos que pioravam, viaja até à Austrália. Os médicos não acertavam com o tratamento ou a cura das suas maleitas, que a faziam ser dona dum humor muito inconstante. Ora lhe receitavam tisanas ora havia outros que lhe aconselhavam a usar armações de metal para lhe manterem a coluna direita. Isabelle Bird tinha alturas em que mal podia andar meia dúzia de metros e a neurastenia acentuava-se com o avançar da idade. Juntamente com a sua irmã Henrietta, fixa-se em Tobermory e ambas vêem os dias a passarem, sem nenhum objectivo, sem nenhuma prospectiva de vida.



Até ao dia em que um médico lhe receita, invulgarmente, uma viagem pelo mar e que dormisse sempre no chão duro do navio. Era um receituário fora do vulgar, mas que Isabelle Bird tomou à letra e foi avante com a mesma. E até ao fim da sua vida aviou sempre esta receita fazendo do Mundo a sua farmácia. A romper nos quarenta anos de idade embarca para a Nova Zelândia (1872) a bordo dum navio, demorando seis meses na viagem. Numa carta que envia para a sua irmã Henrietta, que se deixara ficar na segurança de Tobermory, relata a sua lista de moléstias que sofria "nevralgias, dores de ossos que me trespassam os membros como agulhas, inflamação dos olhos, ...", amaldiçoa o médico que lhe aconselhara tal viagem e queixa-se de que "Sinto-me toda a tremer e oprimida por um terror indefenido...". Mas, apesar de tudo: "...as minhas costas estão melhores mas a minha cabeça está tão pesada que nunca me apetece falar".


Em Auckland embarca num desconjuntado e velho vapor a pás, o "Nevada", com destino a São Francisco. A viagem é extremamente penosa, violenta e perigosa, pois o velho barco fura as tempestades e as ondas do mar com muita dificuldade. Pela primeira vez Isabelle Bird sente a vida em perigo, mas essa sensação adrenalideira dar-lhe-á um prazer até aí desconhecido. Dois dias após o início da odisseia marítima uma tempestade abate-se sobre o frágil navio. O mesmo não é estanque e os poucos passageiros e os tripulantes sentem o navio a estalar a cada turbilhão de ondas que o engole. Desta sensação de medo e terror escreverá: "Os estalidos, os rugidos, os gemidos mal se ouviam, ou melhor estavam cobertos por um som que, treze meses de experiências marítimas de toda a espécie, nunca mais voltarei a ouvir e que espero não voltar a ouvir nunca mais, a não ser dentro dum barco muito bom........ Não era o assobiar do vento através do cordame mas sim o ruído que o ar fazia ao girar, carregado de partículas de água. O mar em si não estava agitado: o ciclone tinha-o literalmente acamado. De facto durantes estas horas difíceis foi mesmo impossível ver o mar, tão ameaçadora estava a sua superfície, como que levantada para o céu." Durante a viagem trata dum rapaz tuberculoso que viaja com a sua mãe. A sua vida começa a fazer sentido. Os perigos que ia vencendo, as viagens que vai efectuando o sentir-se útil a tratar de alguém que sofre tanto ou mais do que ela, tudo se conjuga para Isabelle Bird começar a dar um novo sentido à vida. E a paixão pelo enfermo vai-se avolumando.


Em Janeiro de 1873 o velho vapor "Nevada" aporta em Honolulu no arquipélago do Hawai, então conhecida como Ilhas Sandwich (1), o que para os passageiros torna-se uma benção, depois do Inferno que haviam passado, na atribulada travessia do Pacífico que fora tudo menos pacífica. O jovem tuberculoso piora o seu estado de saúde e é obrigado a ficar em Honolulu a tratar-se pelo que Isabelle Bird resolve também interromper a viagem. Durante setes meses saboreia a alegria de viver num paraíso terreno. É cortejada, pedida em casamento que recusa, trava amizades com colonos e redescobre a equitação, que se  torna numa paixão, servindo não só como desporto como também de lenitivo para as suas dores. O facto de poder cavalgar em sela mexicana vestindo umas calças cobertas por uma saia rodada, escondendo a ditas calças que, na altura, eram impróprias para uma senhora usar, dão-lhe uma sensação de liberdade.



Percorre outras ilhas do arquipélago e, por fim, decide escalar o Mauna Loa (2) acompanhada pelo vulcanólogo britânico William Green e dois guias. Partem de madrugada para subir o vulcão, cavalgando mulas. Demoram dois dias a atingir o objectivo. À  medida que se aproxima da boca da cratera sente o solo a vibrar e um som como se fosse a Terra a falar: "Cavalgámos até uma  brecha repleta de neve gelada, bordejada por uma plataforma. Depois desmontámos das nossas ulas, saltámos por cima da fissura. A oitocentos pés abaixo de nós abria-se a sombra inacessível e terrível da cratera."  Será uma das noites mais excitantes da sua vida, essa que em que dorme no bordo da cratera. Adormece a ouvir a Terra a "falar" e a respirar. De madrugada levanta-se e volta a olhar para o enorme caldeirão em efervescência no interior da garganta. "A Estrela Polar tremia friorenta por cima do cume gelado e uma Lua azul, quase cheia esvaía-se lentamente no espaço infinito. O Cruzeiro do Sul tinha-se deitado. Dois picos, sob a Estrela Polar, nitidamente desenhados no céu, eram os únicos sinais a provar a existência dum mundo para além do fogo e do mistério. Havia a luz, uma luz intensa, viva. O próprio Sol teria parecido pálido a seu lado. Que luz!....... As telas da tenda tinham ficado cor-de-rosa; as paredes da cratera e as arestas cinzentas que a rodeavam estavam encarnadas." Desta estadia escrevará o livro "Seis meses nas ilhas Sandwich".


Do paradisíaco Hawai segue para o território continental estadunidense, por lhe terem informado que no Colorado o clima seria favorável à amenização das suas dores, onde chega em  Agosto de 1873. Mas também porque lhe tinham falado da rudeza da vida selvagem no Colorado, então ainda na turbulência das corridas ao ouro, massacres de índios, tentativas europeias de criarem um estado autónomo de tudo e todos (Território de Jefferson), localidades com apenas meia dúzia de casas abarracadas mas onde não faltava o saloon com o bordel e a mesa de jogo, ausência de estradas e de autoridade, onde a lei da pistola imperava aos interesses das gentes sem escrúpulos e uma governação com pouco pulso, pois ainda era apenas um Território e não um Estado (3). No Colorado Isabelle Bird viverá um dos períodos mais felizes e aventurosos da sua vida. A sua paixão pela equitação agudiza-se pois, segundo dizia, o andar a cavalo cansava-a tanto que a fazia dormir bem e alivia-lhe o sofrimento.


Em Fort Collins, nos contrafortes das Rochosas busca atingir Estes Park, um território  quase virgem, com apenas meia dúzia de ranchos e onde quase ninguém conhece o caminho certo para lá se chegar. Por fim depois de semanas de espera, arranja dois companheiros e consegue atinge Estes Park (Setembro 1873), nome este que proviera dum caçador (Joel Estes) que ali vivera. À sua chegada avista um ser humano que descreve como:  "alertado pelo rosnar do cão o proprietário veio para fora: era um homem atarracado, de estatura mediana, com um barrete velho, um velho colete de caça quase incapaz de ser usado um lenço de mineiro atado á volta da cintura, um punhal enfiado no cinto e um "amigo íntimo", um revólver, saindo da algibeira do colete. Os pés, que eram muito pequenos estavam nus, ou quase, dentro de mocassins rasgados de pele de cavalo. O milagre era as suas roupas manterem-se agarradas a ele apesar de tido. Um milagre que, sem dúvida, se devia unicamente ao lenço atado à volta da cintura." Nesta zona trava conhecimento com um seu compatriota aí residente e dono dum rancho, Griffith Evans e, tendo-lhe perguntado quem era a estranha personagem que vira ao chegar logo lhe informaram que se tratava de James (Jim) Nugent (4), também conhecido por "Rocky Mountain". 


Apaixonar-se-á por Jim "Rocky Mountain" Nugent, nas Montanhas Rochosas e com ele viverá um dos períodos mais ardentes e emotivos da sua vida (entre Setembro 1873 e Dezembro de 1873). Jim Nugent, propenso para os extremos da violência e da poesia, será por ela classificado como "um homem que poderia amar qualquer mulher, mas que nenhuma mulher de perfeito juízo se casaria com ele". Com  ele escalou Long Peak (4.346 metros de altitude), que se situa no Rocky Mountain National Park.


"A minha casa nas Montanhas Rochosas"



No Colorado Isabelle Bird cavalgará sozinha durante um mês, percorrendo um milhar de quilómetros sem destino certo. Só pela fome de conhecer terras a saborear as suas belezas antes do homem aí se instalar. Por vezes cruza-se com famílias que, instaladas nas típicas carroças de toldo branco, buscam chegar ao oceano Pacífico. É a lenta e inexorável marcha aventurosa dos sem nada que ligará o País do Atlântico ao Pacífico, umas vezes em caravana outras sozinhos e que farão parte da lenda do faroeste. Desses encontros na pradaria relatará um deles: "Os proprietários duma dessas carroças convidaram-me para almoçar. Eu forneci o chá (que não provavam havia quatro anos) e eles bolachas de milho. Vêem do Ilinois e há quatro meses que se encontram a caminho...... Estão bastante desencorajados, Dado o seu isolamento e a monotonia da viagem perderam toda a consciência dos acontecimentos e parecem vir doutro planeta." Ainda nesta sua viagem pelo Colorado vai colhendo outras impressões pitorescas, tal como descreve Denver City: "O número de saloons é impressionante....... É aí que personagens como Comanche Bill, Búfalo Bill, Wild Bill e Mountain Jim vão fazer farras e encontrar o tipo de celebridade que procuram." Cruza-se com Comanche Bill e  fica fascinada por ele, tal como estivera com Jim Nuggent. De Comanche Bill dirá: "Um dos mais célebres "desperados" das Montanhas Rochosas e o maior exterminador de índios na fronteira; um homem cujo pai e toda a família foram mortos num massacre em Spirit Lake pela mão dos índios, que levaram com eles a sua irmã de onze anos. Desde aí a sua vida tem-se dedicado à procura da criança e ao extermínio do povo índio onde quer que se encontre." (5). Cerca de meio ano depois de Isabella Bird ter partido das Montanhas Rochosas, Jim "Rocky Mountain" Nugent acabaria abatido a tiro. Desta sua passagem pelo Colorado, ela escreverá o livro "A vida de uma senhora nas Montanhas Rochosas." (1879).


Regressa à Grã-Bretanha onde as dores da coluna voltam a acentuar-se. Resolve partir de novo e ei-la a percorrer o Oriente: chega ao Japão na Primavera de 1878 onde, após uma visita a algumas cidades dirige-se para o Norte e vai viver durante cerca de um mês com os Ainus "selvagens dotados de um corpo suficientemente vigoroso para alimentar as mais atrozes intenções e que adquirem, assim que falam, a doçura de uma mulher, uma doçura inesquecível." Desta sua estadia no Japão escreverá o livro "Pelos caminhos desconhecidos do Japão", onde, entre outras páginas relata a peripécia dum almoço desagradável que teve na cidade de Yusowa e onde foi vista como um animal no zoológico, opois nunca tinham visto uma europeia: "Yusowa é um lugar sem encanto nenhum. Almocei uma refeição miserável, composta por uma coalhada sem gosto feita de feijões à qual fora acrescentado um pouco de leite condensado, num pátio e as pessoas amontoadas às centenas no portão e as que estavam atrás, como era incapazes de me ver, foram buscar escadas e treparam para os telhados adjacentes, onde ficaram até um dos telhados ceder com estrondo e precipitar cerca de cinquenta homens mulheres e crianças no quarto de baixo. ......" Do Japão segue para a Malásia onde se cruza com uma paisagem exuberante e luxuriante, de floresta virgem, rios galeria. Excursiona em elefantes e conhece personalidades excêntricas. Deste périplo malasiano escreverá o livro "O queroseno de ouro" (6). 

A morte da sua irmã (1880) fá-la retornar à Pátria, acabando por se casar com um médico, John Bishop, no ano seguinte. O casamento, insípido, dura uns parcos cinco anos. Cinco anos que Isabelle Bird não saiu da Grã-Bretanha. Mas, após o luto, emala os pertences e em Janeiro de 1889 parte para a Índia, como missionária, ponto iniciático da sua odisseia de viajante insaciável pelo Oriente. Da Índia salta para o Tibete (da experiência tibetana escreverá o livro "Entre os Tibetanos") e daqui para a Pérsia, Curdistão, Irão e Turquia. Cavalga iaques, camelos, cavalos, elefantes, vacas, para galgar quilómetros, suporta neves do Tibete montanhoso e uma tempestade de neve no Curdistão, calores diurnos e frios desérticos, suporta a sede e a fome, resiste às doenças traiçoeiramente transmitidas por mosquitos e inundações nos rios, onde parte uma costela no Tibete. Para uma sexagenária era um feito épico.




Isabelle Bird no Tibete



Em 1892 a Real Sociedade de Geografia de Londres convidou-a a discursar. Isabelle Bird aceitou desde que as mulheres também pudessem participar naquela Associação, que era exclusiva dos homens. Do impasse surgido por esta tomada de posição pública, ainda por cima vinda duma mulher que percorrera o mundo "com a mesma valentia como se fosse um homem", acabou por levar a Real Sociedade de Geografia de Londres quebrar a sua regra de exclusividade masculina, abrindo as portas às mulheres e convidando Isabella Bird para sua "Fellow", tendo sido a primeira mulher a obter tal galardão.


Na Coreia acaba expulsa pelas autoridades, é apanhada pelo conflito sino-japonês de 1896, donde escreverá o livro "A Coreia e os seus vizinhos" (1898). Na Pérsia deixou-se envolver numa missão secreta ao acompanhar um oficial britânico, o Tenente-Coronel Herbert Sawyer, numa fictícia missão geográfica que os levou a Bassorá, Bagdad e Teerão (1890). A sua presença, como senhora idosa, era a ideal para acompanhar o militar, pois ela não levantava suspeitas. Numa mistura de aventura e paixão, entre os dois terá nascido um romance, facilmente compreensível. Apesar disso considera a "viagem horrível" e, separando-se em Teerão, retorna à Grã-Bretanha percorrendo o Curdistão, visitando o Mar Negro, Constantinopla e Paris. Desta viagem resultará o livro "Jornada na Pérsia e no Curdistão" (1891)



Isabelle Bird e o Tenente-Coronel Sawyer, na Pérsia



Em 1896 percorre a China e a Coreia. Corre risco de vida quando a xenofobia se apodera da comunidade chinesa da cidade de Lian-shan-Hsien e tentam matá-la, acusando-a de canibalizar crianças. Dessa experiência, onde sentiu o medo da morte, relatará: "Balouçavam a minha cadeira com paus, atiravam lama e outros projéteis com uma destreza tal que raramente falhavam o alvo. .... Era uma multidão chinesa enraivecida." Consegue escapar para o interior dum celeiro e, empunhando o revólver senta-se disposta a abrir fogo aos primeiros que entrassem. "Trouxeram traves para arrombar a porta a cada golpe sempre acompanhado de berros. Esperava ver tudo desfazer-se. Finalmente um gonzo cedeu e a parte superior da porta abriu-se ligeiramente. Redobraram os esforços e a porta estava quase a cair. Mas, bruscamente, as traves foram abandonadas e num súbito silêncio, houve um ruído, como a queda das folhas de Outono, de inúmeros pés em fuga. Em poucos minutos o páteo ficou deserto e os soldados ocuparam-no." Tinha sido salva, em extremo. Mas não desiste de continuar a visitar a China, pelo que sobe o rio Yang Tsé. Na Manchúria parte um braço quando a carroça que a transportava se virou. Escreve o livro "O vale do Yang Tsé" (1899) e "Fotos da China" (1900), pois apaixonara-se pela fotografia e tornara-se uma fotógrafa de viagens.


Em 1900, com setenta anos, vai finalmente ao Norte de África, continente onde nunca se tinha deslocado por estar convicta que o clima seria violento demais para conseguir suportar. Mas fica-se por Marrocos durante seis meses e, uma das suas imagens típicas, era uma escada que usava para montar um enorme cavalo que lhe fora ofertado pelo Sultão. Cavalga de Marraquexe a Tânger e desta vivência sairá o livro "Notas sobre Marrocos" (1901).


Em 1901 está de regresso à Grã-Bretanha, com intenção de voltar a partir para uma nova viagem à China. Não desiste apesar do avanço da idade e da doença. Mas esta (a doença) não lhe dará tréguas, acabando por levar a melhor prostrando-a na cama com uma trombose e um tumor. Durante cerca de dezoitos meses Isabelle Bird agonizará num leito, o corpo aí preso mas o  espírito a vogar e a sonhar como um pássaro desde o cume vulcânico de Mauna Loa havaiano aos do Tibete, passando pelo de Long Peak no Colorado, raziando pelos desertos do Médio Oriente, os rios orientais com o gigante Yang Tsé à cabeça, as florestas malasianas e indianas, as guerras que assistiu. A multidão de pessoas que conheceu e aqueles que amou, a quantidade de animais que cavalgou (um dos seus maiores prazeres), as peripécias de toda uma vida que a fizeram rir e chorar, os medos que sofreu e venceu, todo este turbilhão vivencial durante dezoito meses terão atormentado aquele espírito ainda lúcido mas preso a uma cama.



Para uma mulher do seu gabarito foi uma tormentosa punição demasiado forte.  Que só findou a 07 de  Outubro de 1904.  

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(1) - O nome de ilhas Sandwich foi atribuído pela célebre comandante James Cook, da Marinha Britânica, ao tê-las descoberto em Janeiro de 1878, como forma de homenagear o Conde de Sandwich que era Primeiro Lord do Almirantado Britânico. Em finais do século XIX o termo Sandwich foi absorvido por Hawai, uma forma de cortar com resíduos coloniais. Na altura, Hawai (nome actual do conjunto das ilhas) era apenas o nome da maior ilha do arquipélago. Desde 1859 que o arquipélago aderiu à confederação norte-americana, tornando-se no seu quinquagésimo Estado. A sua capital é Honululu e o arquipélago, mundialmente famoso pela doçura do clima e gentileza das gentes, sendo composto por oito principais ilhas, é um dos paraísos mundiais do turismo e dos desportos marítimos, nomeadamente o surf.


(2) Mauna Loa - O maior dos cinco vulcões do arquipélago, com 4.170 metros de altitude. Localiza-se na ilha Hawai.

(3) - O Estado do Colorado, localizado no coração dos Estados Unidos, teve nos espanhóis os seus primeiros exploradores europeus (séc. XVI), que lhe deram o seu actual nome (Colorado que significa "de cor vermelha" atendendo à cor predominante na paisagem agreste). O território esteve mais ou menos ao abandono das pretensões europeias, salvo algumas escaramuça entre espanhóis e franceses, até que no princípio do século XIX os  norte-americanos começam a expedicionar para aquela zona, como forma de expandirem o seu território. Escassamente habitado por europeus, a partir de meados desse século (1858) a descoberta de minas de ouro despoleta uma corrida desenfreada até que, em 1861 o governo federal criou o Território do Colorado. Nas duas décadas seguintes seguem-se os habituais conflitos típicos do faroeste, conjuntamente com o massacre de tribos índias. Só em 1876 é que o Colorado se tornou no 38º Estado norte-americano.


(4) Jim Nugent, foi uma das personagens típicas da aventura do oeste americano, à medida que as fronteiras iam ruindo umas atrás doutras e o País se formava. Oriundo do Canadá, fora caçador para abastecer de carne os trabalhadores da Companhia da Baía de Hudson, batedor do Exército, matador de índios e bisontes, pistoleiro a solda de alguém e de ninguém. Tornara-se, por força das circunstâncias, num "desperado", nome que se davam aos fora-da-lei que abraçaram esse caminho mais por desespero do que por gosto). Vivia solitário nas Montanhas Rochosas e era propenso para o álcool, escrevia poemas e escrita burlesca. Tinha ficado cego duma vista ao lutar contra um urso (06/07/1869) em Middle Park. A luta surda por posse de terras nas Montanhas Rochosas entre os novos senhores capitalistas que chegavam e os velhos colonos que já ali se encontravam há muito (entre eles Jim Nugent), acabou por descambar, num dos episódios trágicos daquelas paragens, com a morte de Jim Nugent (Verão de 1874), durante uma briga contra Griff Evans, este a soldo dos novos senhores, em Estes Park. O seu estado alcoólico também não o ajudou a precaver-se. Típico nas histórias do faroeste.





 

Deste livro, cuja biografia de James Nugent é, em parte basedo nas memórias de Isabella Bird, não conheço nenhuma edição em português.


(5) Existirá alguma discrepância no que Isabella Bird conta sobre a saga familiar de Comanche Bill. O massacre de Spirit Lake ocorreu entre 08 e 12 de Março de 1858, na zona fronteiriça entre o Iowa e o Minesota,  perpretado por índios sioux desesperados, que mataram 35 a 40 colonos e raptaram quatro mulheres: uma jovem de 14 anos (Abbie Gardner Sharp) e três senhoras casadas. Destas reféns duas foram mortas (do grupo das casadas) e diligências efectuadas pelas forças americanas levaram à libertação das outras duas. Abbie Sharp muito mais tarde viria a escrever as memórias deste seu cativeiro, que durou uns meses.


Comanche Bill, de verdadeiro nome William Mankin, foi um homem típico de fronteira, onde a única companheira fiel era a sua arma (e ele usava várias). Foi um dos muitos "desperados" que ajudaram a construir a lenda do Oeste americano. Batedor do Exército, pistoleiro, assassino a soldo, xerife em Hunnewell (Kansas), acabou a ser julgado por homicídio em Fort Smith (1880) desconhecendo outros pormenores sobre a vida desta personagem. Dele Isabella Bird escreveu, também: "Era uma personagem pitoresca que montava um cavalo muito bom. Trazia um grande chapéu mole do qual se escapavam uma grande quantidade de belos caracóis, que lhe caíam quase até aos rins. A barba dele era bela, os olhos azuis a tez colorida. Não tinha nada de sinistro na expressão..."




"Comanche Bill", segundo uma pesquisa
que a família Mankin está a reunir


Eventualmente o seu ódio ao nativos poderá ter resultado duma outra história sobre aquele que se presume ter sido seu pai, John Mankin, que foi esfolado vivo por um grupo de índios comanches, em 1853, como forma de punição por ele ter assassinado, a sangue-frio e sem nenhuma razão a não pelo prazer, uma mulher (sqwan) daquela tribo, ao passarem por uma reserva índia, num acto em que foi criticado pelos seus próprios companheiros de caravana que temiam a retaliação, o que veio a acontecer. Jonh Mankin tinha-se juntado a uma pequena coluna de emigrantes que, partindo do Arkansas buscavam chegar a  Califórnia. Tendo os guerreiros índios cercado a coluna dos colonos exigiram  a entrega do culpado de tal crime, sob pena de matarem toda a gente da coluna, incluindo mulheres e crianças. Acabaram por lhes entregar John Mankin ao qual, do pescoço aos pés, foi-lhe retirada a pele, estando ele vivo e perante a assistência passiva dos seus outros companheiros de viagem. Esta história foi confirmada pelo Capitão confederado AS Wood quase quatro décadas após os factos, quando ele residia na zona, ao comentar uma notícia que fora publicada (em 1859) no jornal novaiorquino "Brother Jonatham" onde se relatava esta acontecimento.



(6) Queroseno enquanto sinónimo de Península. Assim era conhecida a Malásia, como a Península de Ouro.


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HISTORIANDO MOÇAMBIQUE COLONIAL








Gaspar Bocarro - (?/?) - Explorador. Em Março de 1616, partiu de Tete, a mando de Diogo Simões Madeira*. Depois de ter atravessado a região dos maraves, onde estabeleceu contactos com o Karonga Muzura, rastreou as minas de prata de Chicova*, flectiu para a região do Niassa, onde terá atingido o lago do mesmo nome e, daí, atravessando o rio Rovuma, dirigiu-se para Quíloa, totalizando um percurso de cerca de 2.000 quilómetros. É considerado, indubitavelmente, um dos maiores exploradores sertanejos do seu tempo.



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Joaquim Pereira Marinho - (1782 - 1854) - Oficial do Exército Português (Brigadeiro). Natural do Porto, após ter efectuado os seus estudos universitários em Coimbra, ingressou no Exécito. Esteve na Índia e em cabo Verde, tendo exercido funções governativas nesta última colónia. Em 1840 vem para Moçambique, como Governador-Geral, cargo que apenas exerceu durante dois anos. Na sua actividade governativa tentou desenvolver o comércio e a incipiente indústria. Distinguiu-se no combate aos traficantes de escravos, tendo ficado conhecido pela alcunha de "Azourrague dos Negreiros". Provocando um descontentamento sem precedentes no poderosos grupo de pressão que eram os traficantes humanos, estes conseguiram que o mesmo fosse destituído do cargo e preso. Desterrado para Goa, em sede de julgamento, acabou absolvido. 

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Os maraves - Admite-se que os maraves tenham deixado o Sul do Congo, onde habitavam e se tivessem fixado no Norte do actual Malawi, entre 1200 e 1400 DC, sob o comando de um chefe com o título dinástico de Karonga. Devido, talvez, ao esgotamento de recursos naturais, os maraves, agora sob o comando de Karonga II efectuaram nova migração, tendo-se fixado na actual zona da Marávia, na cordilheira Dzaramanha, onde submeteram a população local, e para quem a referida cordilheira era uma área espiritualmente sagrada, de intervenção divina.


Neste local os maraves vieram encontrar um outro povo, também originário do Sul do actual Congo, os Nsenga. Os maraves dividiram-se em dois grandes clãs, os Piri, com estrutura política e militar e os Banda, com estrutura agrícola. O Karonga teria que casar obrigatoriamente com uma mulher Piri, atribuindo-lhe o título de "Muali" e só esta podia tocar o tambor sagrado do povo e invocar o Ser Supremo.

Em finais do século XV terá estalado um conflito no seio dos Piri, pelo que o Karonga reinante ordenou a prova do maubvi* aos chefes suspeitos. Tendo alguns deles recusado foram obrigados e fugirem para Sul e Oeste partindo-se, deste modo, a unidade clânica. Os chefes Piris submeteram ainda o povo Cafula e encontraram, no Baixo Chire, um outro povo, os Chipeta, que também já tinham submetido os Cafula. Terá sido dos Cafula que os Maraves herdaram e interiorizaram dois rituais: o "nhau" (irmandade masculina) e o culto dos territórios divinos.


Em meados do século XVI, depois de terem sido derrotados pelos portugueses, aliam-se a estes e ao Monomotapa*, chegando a auxiliar Gatsi Ruserere com milhares de homens, por intervenção pessoal de Diogo Simões Madeira*. O apogeu militar dos maraves denota-se no decurso do século XVII. Por volta de 1617 os maraves, chefiados pelo Karonga Muzura, atacam o Reino do Monomotapa* e, em 1622, derrotam um seu rival. De seguida intervêm na disputa de da sucessão de Gatsi Ruserere retirando-se, depois, para os seus domínios. Mudando a sua capital para perto do lago Niassa, acabam por impôr o seu domínio até ao litoral Norte moçambicano, conseguindo estabelecer uma plataforma comercial entre o Zambeze e a ilha de Moçambique* que rodava, principalmente, à  volta das armas e fogo  e munições, marfim, ouro e panos. Em finais do século XVII decresce a importância desta rota comercial marave, por influência dos jáuas**  que, em conjunto com mercadores árabes, criaram percursos alternativos. (1)


Foram um dos povos africanos a serem acusados, pelos portugueses, da prática regular do canibalismo, prática esta que lhes facilitava as conquistas territoriais, não só pela resolução do problema da falta de carne animal para se alimentarem durante as suas incursões, como também pelo terror psicológico lançado nas populações que tentavam fazer-lhes frente.



Por volta de 1730 já  os maraves tinham perdido o monopólio do marfim em detrimento dos jáuas e, no decorrer desse século, serão absorvidos pela política da instalação dos prazos*, restando aos Karongas um poder mais teórico que prático.



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(1) - É com base na extensão deste dito império marave (mais comercial que político-militar, diga-se de passagem) que, já em pleno século XX, alguns sectores da sociedade  malaviana pretendiam justificar a anexação, para o seu País, dos territórios nortenhos de Moçambique. Após a independência de Moçambique, agudizaram-se as tensões entre os governantes moçambicanos e malavianos, por terem visões políticas diferentes. Se bem que ambas ditatoriais, a liderança moçambicana de Samora Machel era revolucionária, anti-apartheid e contra o neo-colonialismo e a liderança malaviana de Hastings Banda, era conservadora e amiga dos regimes rácicos quer da Rodésia quer da África do Sul. Assim, no seio desta tensão, cresceram alguns adeptos da restauração do antigo império marave e, à junção do território malaviano aos do norte de Moçambique, chamar-se-ia "Rombézia". A "Rombézia" nunca passou duma utopia, fomentada por sectores mais conservacionistas da sociedade malaviana e que se dissolveram após o baixar das tensões fronteiriças entre os dois países, depois de instaurada, em ambos, a democracia. Presentemente, o que se disputa é o nome do lago Niassa, que as autoridades malavianas persistem em quererem que, internacionalmente, seja referido por lago Malawi.



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Manilha - Argola de adorno para ambos os sexos que, podendo ser de metal, marfim ou madeira, é usada nos nos membros superiores ou inferiores.



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Massambaz - Corruptela portuguesa do termo marave "va-sambadzi" e que se reportava ao escravo comerciante, negro ou mulato, da confiança pessoal do mercador branco, que se embrenhava nos circuitos comerciais do interior, interditos ao seu patrão, assumindo a chefia das caravanas e mercadejando toda uma panóplia de artigos tais como ouro, marfim*, panos*, sal, abadas*, bem como também escravos. Correspondia ao pombeiro angolano. 


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República da Maganja da Costa - Com uma superfície de cerca de 800 mil hectares a República da Maganja da Costa tinha um território compreendido entre os rios Moniga, a Norte; Liango e Lugela, a Sul; o oceano Índico a Este e, a Oeste, uma linha imaginária que ligaria a nascente do Moniga à confluência dos rios rios Lujo e Lugela.

Em 1857, João Bonifácio Alves da Silva** aprazou a Maganja da Costa, que não estava aforada e, em 1861, invade as terras do Sultanato de Angoche*, como medida retaliativa duma incursão de Mussa Quanto**, comandante das forças daquele sultanato, fizera anteriormente (cinco anos antes) à Zambézia, onde arrasara todos os povoados que encontrara, estando muitos destes povoados localizados nos seus prazos.

Para a invasão do Sultanato de Angoche, João Bonifácio Alves da Silva preparou um excelente exército de achikundas* maganjas, de boas e ancestrais tradições guerreiras. Acabada a invasão, que culminou com a derrota de Mussa Quanto** e a morte de João Bonifácio Alves da Silva, os seus achikundas retiraram-se para a Maganja da Costa e instalaram a sua capital em Aringa sendo, assim, conhecidos pelos "nha-aringues".

Esta República de escravos teve uma existência efémera, entre 1862 e 1898 mas, durante a sua existência, montou uma estrutura política e militar única nos anais moçambicanos. O chefe supremo era o Umcumbe (Capitão-Geral), sendo secundado pelo Bazo e a seguir pelo Canhongo. As ensacas eram comandadas pelos Cazembes e enquadradas por Sachecundas e Mucatas.


Assente num sistema de pirâmide hierárquica, os Sachecundas e os Mucatas elegiam os Cazembes e estes os Umcumbes. Para além da estrutura militar haviam os civis (colonos e escravos) que podiam desempenhar qualquer trabalho, excepto a caça e a guerra (idêntico aos prazos*). O primeiro Umcumbe foi Mateus que, como Lugar-Tenente de João Bonifácio Alves da Silva, colaborou no comando da invasão do sultanato de Angoche. Foi sucedido por Mateus (filho), que é derrubado por Alexandre. Em 1897 Alexandre morre e  sucede-lhe Namurera, que se torna no último Umcumbe, já que, em 1898, João de Azevedo Coutinho**, no cumprimento duma nova política colonial que não permitia zonas autónomas, invade a República, coadjudado pelo ex-Umcumbe Mateus (filho), pondo fim à única república com estrutura eminentemente militar que existiu em Moçambique.


De realçar que os maganjas actuaram junto das forças portuguesas na repressão da revolta de Massingir, em 1884; com Manuel  António de Sousa*; nas lutas contra os macololos**, em 1889, com Serpa Pinto** e contra o Reino do Barué*, em 1891, com João de Azevedo Coutinho.


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Bazo - Comandante duma ensaca, sendo figura importante na hierarquia militar.


Canhongo - Velho achikunda, intocável e com funções de adivinho. Tinha várias funções sociais, como a de incitar os guerreiros ao combate e desempenhava, também, o papel de bobo da corte. Na hierarquia militar tinha um posto de prestígio.


Cazembe - Comandante de ensaca; chefe de escravos, responsável pelas aldeias dos mesmos e que era sempre um achikunda.


Ensaca - Corrupção fonética da palavra "ntsaka", que significa grupo ou bando de pessoas, pelo que, em linguagem militar, se pode referir como um grupo de combate, sem definição certa de número de homens.


Mucata - Militarmente seria um Cabo duma ensaca.

Sachecunda - Escravo com funções de chefia subalterna numa ensaca.


Umcumbe - Chefe máximo da República da Maganja da Costa.


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Mateus - (?-?) - Nasceu no Namarral, sendo mestiço de sangue afro-indiano, este Cazembe de João Bonifácio Alves da Silva. Tendo como cognome de guerra "Gobelina", liderou a força achikunda que invadiu o Sultanato de Angoche em 1861. No regresso à Zambézia, após a morte do seu amo, funda e organiza a República da Maganja da Costa, tendo sido o seu primeiro Umcumbe.


Mateus (filho) - (?-?) - Também por vezes referido como Mateus da Costa, era filho de Mateus, o fundador da República da Maganja da Costa, tendo-lhe sucedido como Umcumbe. Colaborou na invasão do Sultanato de Angoche, em 1861. Em 1897 auxilia os portugueses, de quem foi sempre um fiel servidor, na invasão dessa mesma República que liderara, até ter sido deposto. Comandou em 1899, os sipaios* do prazo* do Boror**, na incursão contra o Sultão Mataca**, no Niassa.


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Brasão de armas da vila de Manica - Fundo vermelho com elefante de ouro orlado a negro e armado de prata, rodeado por oito besantes de ouro. Tem a coroa mural de prata com quatro torres e listel branco com gravação a negro de: "Vila de Manica"



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Brasão de armas da cidade da Beira - Em fundo de ouro um navio antigo de três mastros, em negro com realce a prata, mastreado e encordado de negro e vestido de vermelho. No cimo do mastro principal tem uma bandeira azul com cinco besantes de prata. O mar tem cinco faixas de verde e prata e a coroa mural, também de prata, apresenta cinco torres. O listel é branco com a inscrição a  negro de: "Cidade da Beira".




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* - Já aberta ficha
** - A abrir ficha

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LEITURAS


No continente africano, onde a escrita era desconhecida, a oralidade era um marco fundamental na transmissão dos saberes, para transitarem geracionalmente. Aliás, um dos provérbios africanos por causa da oralidade africana é precisamente "Em África cada velho que morre é uma biblioteca que se perde." Uma das imagens que nos salta, quando falamos de África, é precisamente um grupo de pessoas sentados sob uma árvore (se de dia) ou em redor duma fogueira (se de  noite) onde um velho conta histórias ancestrais de leões ferinos enganados por palancas ladinas, ou de espíritos malignos vindos das trevas das montanhas, batalhas de armas abertas e outras de amores escondidos, tudo num entrosamento místico e mítico, mas quase sempre contendo uma moral.

E é nessa saudosa África perdida que eu, doente assumido do síndrome de Peter Pan que sou (um dos raros luxos a quem ainda me posso dar) e me recuso a perder, apesar de espartilhado na civilização do consumismo rápido do digere e deita fora das grandes urbes. Mas, volta não volta, nesta urbe imperial do cimento e do alcatrão, qual criança que por vezes descortina uma flor a lutar para sobreviver no meio das pedras calcáreas dos passeios, consigo descobrir uma flor literária a lutar para sobreviver no meio dos calhaus calcáreos em que nos transformaram.

E, desta vez foram duas as flores literárias que encontrei, plantadas pelo mesmo jardineiro, que dá pelo nome de Fernando Fonseca Santos. Ao deambular por uma exposição de livros comprei, deste Autor angolano, os romances fabulísticos "A lenda dos Homens do Vento: Oma-Handa Ekwamine, o clã do Leão" (Volume I, Quetzal Editores, Lisboa, 1997, 349 págs.) e "A lenda dos Homens do Vento: O tempo do Meio" (Vol. II, Quetzal Editores, Lisboa, 1998, 330 págs.).

Na badana do primeiro livro leio uma frase que o Autor escreveu noutra obra sua ("Os caminhos da Terra", que eu não conheço) "Os europeus escrevem nos livros e os africanos na alma". É daquelas frases que, na sua simplicidade, encerram, sintetizam e arrumam todos os grandes discursos que pudéssemos ler sobre literatura africana.


Nos dois livros em causa lêem-se com bastante agrado as fábulas onde se entrecruzam homens e bichos, lendas e mistérios, lutas fraticidas de povos que facilitam a lenta penetração da colonização portuguesa no Sul de Angola, mortes honrosas e amores perfeitamente imperfeitos. 

Nestas duas obras as fogueiras da minha adolescência, que estavam letargicamente em borralho comatoso, voltaram a crepitar com uma sonoridade calorenta como já há muito não sentia.


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A propósito da conquista do Oeste americano, que se abordou ligeiramente na biografia de Isabelle Bird, quando se falou sobre a suas estadia nas Montanhas Rochosas e sobre Jim Nugent e Comanche Bill, li um livro fabuloso sobre essa epopeia americana. Trata-se de "O Pequeno Grande Homem", (Cavalo de Ferro, Lisboa, 2008, 556 págs.) da autoria de Thomas Berger.


Trata-se dum romance épico sobre a conquista do Oeste americano que cobre a segunda metade do século XIX. Tendo como personagem central Jack Crabb que, já muito velho (centenário com 111 anos) é procurado por um jornalista/escritor e começa a relatar a este a sua vida errante desde que, emigrando com a família para Oeste numa das famosas "escunas da pradaria" (carroças de toldo branco) foram assaltados por índios cheyenes, tendo ele e uma irmã sido raptados pelos mesmos.




Ao longo das 550 págs. do romance passam vários acontecimentos e personalidades que ficaram na História do Oeste americano - a batalha de Litle Bighorn, o duelo do OK Corral em Tombstone, Wayt Earp, General George Armstrog Custer, Wild Bill Hickok, Calamity Jane, a Union Pacific e a construção ferroviária, a cavalaria americana, a chegada ao Pacífico, e uma descrição circunstanciada sobre o modo de vida índio, nomeadamente os cheyenes - os tsistsistas ou Seres Humanos - por se considerarem superiores aos outros. Para além de relatar as peripécias de Jack Crabb e da sua irmã, que se vão cruzando e separando ao correr dos tempos, o livro é um libelo acusatório à forma como a Nação Índia foi destruída sem apelo nem agravo.

Um romance de aventuras muito bem estruturado, irónico, documentado fotograficamente e baseado em personagens e factos que existiram e  aconteceram, e cuja leitura, no remanso do nosso lar, nos faz montar num cavalo imaginário e sonharmos que somos um qualquer Jack Crabb. Vivamente recomendo a leitura deste livro, principalmente para os apaixonados pelo romance de aventuras no geral e do Oeste americano, no particular.

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Já o mesmo não digo do filme que fizeram, inspirado neste livro. Tendo a película o mesmo nome, e como actores principais Dustin Hoffman e Faye Dunway, o filme é uma seca tremenda. Mesmo tendo a consciência que é muito difícil um filme rivalizar com a obra escrita, atendendo a que um realizador está espartilhado no tempo da filmagem ao passo que o escritor pode-se "estender" à vontade, mesmo assim acho o filme muito fraco, em que as sequências são despejadas umas em cima das outras e sofrendo cortes abruptos nas ligações entre as diversas histórias.




Já estando fora dos circuitos comerciais, mesmo assim pode-se adquirir o filme, que está legendado em português, mandado vir através de empresas especializadas. No entanto, para mim, foi dinheiro deitado fora.


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POESIA


Manuel Alegre - Tenho uma admiração incondiconal pela poesia deste homem. Considero-o um dos dois poetas geniais do século XX português (o outro foi Fernando Pessoa) e um dos que integro no Olimpo da poesia portuguesa de todos os tempos, que são, entre outros, Luís de Camões (como não podia deixar de ser), Manuel Maria Barbosa du Bocage e Antero de Quental (1).



Manuel Alegre


Já muito se escreveu sobre este político que faz poesia ou poeta que se dedica à política (não sei bem definir) e que, felizmente, ainda luta entre nós. Se politicamente tenho discordado de ideias suas (mas não me esqueço que ele contribuiu para que eu vivesse num País onde pudesse discordar dele e isso lho devo) já a nível poético estou completamente rendido (aliás, sempre estive).


E como declamador... não conheço outro igual. Acho-o fabuloso a declamar. O álbum discográfico "É preciso um País" (que eu já escrevi anteriormente), em que ele declama 21 poemas seus, acompanhado à guitarra por Carlos Paredes, é uma obra-prima da declamação poética. Que vale a pena adquirir. E ouvir.



"Trazias de Lisboa"
Voz: Manuel Alegre
Guitarra: Carlos Paredes


Grande parte da sua obra poética foi reunida num livro titulado "Manuel Alegre: 30 anos de poesia" (Círculo de Leitores, Lisboa, 1996, 709 págs.) (2) que, como não podia deixar de ser, eu tinha que adquirir. Mas não só a adquiri como fui lendo a mesma, aos poucos e poucos, como quem degusta um prato de gastronomia altamente saborosa. 



Tendo prestado serviço militar em Angola, no decurso da guerra independentista de 1961/1974,  passou por Nambuangongo. Muito mais tarde, já após a independência do território, visitou aquela localidade, onde leu poesia por si lavrada sobre as memórias do seu tempo militar. Um dos seus poemas - "Nambuangongo meu amor" - foi magistralmente cantado por um grande intérprete e compositor musical da nossa praça, Paulo de Carvalho. Não resisto a colocar esse registo musical.




"Nambuangongo" meu amor
Intérprete: Paulo de Carvalho


Dessa sua visão da guerra em Angola legou-nos o seu primeiro romance "Jornada de África", onde narra a história dum militar português - Sebastião - para ali destacado e que, tal os outros combatentes daquela época, irá calcorrear os trilhos da guerra e, no meio deste caos, irá descobrir a violência da vivência colonial. Este romance inspira-se, metaforicamente, na narrativa memorial "Jornada de Africa" de Jeronymo de Mendoça (3) (Escriptorio, Lisboa, 1904, 2 volumes). A similaritude de ambas as jornadas africanas são paralelas, pois se Alcácer-Quibir foi o prenúncio da queda da Casa e da Coroa Real Portuguesa e consequente perca da independência nacional, Angola foi o prenúncio da queda da ditadura portuguesa e consequente perca do comatoso Império  Colonial Português. Ambas as jornadas africanas conduziram-nos a fracturas políticas que, fazendo-nos claudicar perante a realidade nua e crua transversal a todo um País, mudaram o rumo da nossa História colectiva.

Há muitas facetas da sua longa e atribulada vida, quer como poeta, romancista, militar, combatente do fascismo, militante socialista (para mim uma das raras cauções do verdadeiro PS ainda vivo), locutor  da Rádio Portugal Livre, em Argel, político na democracia portuguesa mas, acima de tudo, portador duma postura coerente, diplomática e elegante ao longo da vida. Mas há um poema que ficará na História da resistência à ditadura portuguesa (ou a qualquer outra ditadura), um poema transversal no tempo e no espaço da sociedade portuguesa, que cruzou, cruza e cruzará gerações. A admirável "Trova do vento que passa", já declamada e cantada por tanta gente. 



"Trova do vento que passa"
Voz: Manuel Alegre
Guitarra: Carlos Paredes



A sua obra é um puro monumento à poesia. Não sei quando voltaremos a ter outro Manuel Alegre. Desconfio que nem tão depressa, apesar da fama que o nosso País tem de ser uma terra de poetas. Só que... vates como este...hum, hum. E, por isso, antes que ele parta a declamar a sua poesia pelas galáxias fora, quero aqui expressar publicamente o meu "Obrigado Manuel Alegre".



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(1) - Não assinalo aqui o Rei Dom Dinis, por (ainda) não ter conhecimento exaustivo da sua obra trovadoresca que, presentemente, ando a pesquisar. Dom Dinis, no seu longo reinado de 46 anos foi um Rei excepcional e culto, que não só sabia escrever e ler como compreendia o que lia*. Fundou a Universidade, fixou o Português como língua oficial do Reino, implementou a consciência da identidade nacional enquanto Estado-Nação e redefiniu as nossas fronteiras quando assinou o Tratado de Alcanizes, legislou abundantemente para cortar abusos sobre o povo e centralizou o poder, entre muitos outros aspectos positivos (e outros negativos) que se lhe podiam apontar. Pouco conhecido entre os portugueses que identificam-no mais como tendo mandado plantar o pinhal de Leiria. Sobre o arroteamento deste pinhal Fernando Pessoa apelidá-lo-ia, magistralmente, de "plantador de naus a haver", pois naus e caravelas envolvidas nos descobrimentos que houveram mais tarde tiveram o madeirame que as formou e formoseou daqui.


* - Contrariamente a muitos políticos actuais da nossa praça, que apenas sabem ler extractos de conta bancária e escreverem ordens de pagamento para "off-shores". 



(2) Há uma outra edição deste mesmo livro das Publicações Dom Quixote.



(3) Jeronymo de Mendonça foi um portuense que combateu em Alcácer-Quibir ao lado do  Rei Dom Sebastião. Após a derrota foi feito prisioneiro, até que conseguiu comprar a sua liberdade. Regressou ao Reino tendo escrito o livro "Jornada de África", que teve a primeira edição em 1607, onde relata esta odisseia que acabou por se tornar fatídica para Portugal. A segunda edição deste livro foi em 1785 e a terceira em 1904, sendo um livro muito pouco conhecido na generalidade dos portugueses. No entanto é considerada uma narrativa verídica, tendo a mesma sido escrita por quem foi lá, combateu, ficou aprisionado e conseguiu pagar o resgate e regressar para contar a história. Possuo os dois volumes desta terceira edição (1904) e, tendo-os lido, percebi muito melhor o romance de Manuel Alegre.



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MÚSICA


Patxi Joseba Andion González é um dos meus cantautores preferidos e cuja obra musical faz parte do núcleo duro da minha discoteca. Madrileno de nascimento (1947) mas com raízes bascas, para além da música o teatro é outra das suas actividades profissionais.





"Vinte anos... palabras"



Ainda na vigência da ditadura portuguesa foi impedido pela polícia política (Direcção-Geral de Segurança) de actuar no nosso País que, face à sua assumida militância pelos valores da esquerda, expulsou-o por duas vezes do nosso País. Mas, como não há duas sem três, um mês antes do golpe de estado militar abrilino, Patxi Andion actuou no Coliseu de Lisboa (24 de Março), que estava a abarrotar e dá um concerto que foi considerado memorável. Desses tempos recordará mais tarde, numa entrevista ao Público: "Foi uma coisa incrível, na minha vida. As duas primeiras vezes que fui para cantar em Portugal, a PIDE levou-me para a fronteira. Devo ter sido o único cantor a ser expulso duas vezes. Então aquela vez era a primeira que eu tinha um concerto grande, em Lisboa. Foi uma noite inexquecível, maravilhosa." Ainda hoje tenho pena não ter assistido a esse concerto. Mas seria impossível pois não tenho o dom da ubiquidade.  Estava nos antípodas, armado em candidato a guardião do Império.



"Rogelio"



Muito jovem formou a sua primeira banda de música roqueira (Los Camperos). Depois, abandona a música e vai trabalhar num bacalhoeiro para a Terra Nova. Desses e doutros tempos lembrar-se-á  mais tarde da fome e da solidão que passou, mas que lhe ajudou a moldar o carácter. Quando regressa da aventura do bacalhau retorna à música e ruma para França, então uma das Pátrias da Liberdade na Europa. Por lá vagabundeia durante cerca de dois anos, a tocar nas ruas e no metro parisiense. De regresso a Espanha grava o seu primeiro disco, no qual alguns temas são proibidos de tocar na rádio espanhola.


Samaritana


A terminar relembro-me que, quando o meu Pai partiu para a sua Grande Grande Viagem, durante o seu funeral não me saía da  cabeça o tema musical "Padre", magistralmente composto e interpretado por este músico.





"Padre"


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PORQUE SÓ HÁ UM PLANETA


África do Sul - Reside e trabalha no Kingdom of the White Lion, na África do Sul, um zoólogo autodidacta, de nome Kevin Richardson que, já de si, é uma lenda na luta pela preservação das espécies felinas. Nascido em Joanesburgo, em 1974, desde cedo revelou a sua paixão por animais.




 Abandonando os estudos universitários, casualmente começou por tratar de dois jovens leões e, daí em diante, não mais parou tornando-se, presentemente, num dos maiores especialista das espécies felinas.




Depois de ter trabalhado uns anos no Lion Park mudou-se para o Kingdom of the White Lion, um outro parque natural onde ele interage com um à-vontade sem igual com os felinos (39 leões, hienas e leopardos).




A fim de reunir capital que lhe permita e às suas equipas manterem os animais, trabalha com o os felinos para anúncios comerciais, documentários e filmes, por exemplo. Existem vários vídeos de longa duração, como documentários centrados na sua pessoa e nos animais com que convive (leões, hienas e leopardos), que estão nas redes comerciais. São trabalhos em prol da defesa da fauna animal e cujas receitas revertem, em grande parte, para manter a razão de ser da sua vida. Pelo que aqui fica a minha sugestão: a aquisição dum vídeo dele será uma boa prenda para ofertar a alguém. Basta procurar na "rede".



Ferido por algumas vezes, nas brincadeiras com os felinos, estes aceitam-no como sendo um dos seus. Em todo o Mundo poucos se podem dar ao luxo de brincarem em lutas, dormirem sestas e tomarem banho com estes grandes gatos como Kevin Richardson o faz. Este conservacionista é, sem dúvida alguma, uma das reencarnações do lendário George Adamson (já aqui biografado).


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Angola - Foram localizados 600 hectares de floresta de montanha, que se desconhecia até ao presente momento, em Mamba, na zona central do País. A floresta de montanha situa-se a um nível acima dos 2.000 metros e contém uma biodiversidade riquíssima, que vem trazer novo alento a espécies ameaças ou em risco de extinção. Até agora existia apenas um floresta deste tipo com uma área de 200 hectares naquele País. Esperemos que o bom-senso prevaleça e se preserve esta nova área, recentemente descoberta graças à tecnologia do Google Earth, que actualizou mapas do Paneta.


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Portugal - Quem não revelou bom-senso foi a Assunção Cristas, Ministra da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, ao vetar a deslocação de dois cientistas portugueses à reunião anual da Comissão Baleeira Internacional, que se realiza no Panamá. Será a primeira vez que Portugal ali não irá comparecer e logo quando se vai votar uma decisão de se criar uma zona costeira na América Latina que irá interditar a caça à  baleia. Todos os votos são preciosos e o voto português era favorável a esta medida.


Falta de verbas para tal deslocação, foi a  justificação ministerial. Para pagar a viagem e estadia a dois cientistas portugueses por uns dias ao Panamá? Mas quando se realizou a  Conferência do Rio, que já se sabia que, tal como as outras, não ia dar em nada, já houve verbas para a Ministra Assunção Cristas estar presente.


Não foi lá fazer nada de relevante para o País, para o Planeta ou para o Ambiente. Mas foi lá. Para isso já houve verbas. Para passear, comer uns croquetes,  passear-se no meio da nata dos empatas, chegar calada e sair muda... houve verba. Agora para dois cientistas irem a uma reunião internacional onde se vai decidir a criação de mais um refúgio para uma espécie ameaçada e onde todos os votos são preciosos... não, não há verbas.


"Temos que fazer escolhas", disse a Ministra justificando-se. Pois. É pena ela não ter escolhido a porta de saída. Mas depois de ter tido um Portas que lhe deu a entrada... tomou-lhe o gosto.



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Não se acobardem. Acusem quem pratica a crueldade aos animais, pois estes estão indefesos. Têm muito pouca protecção legal. Participem, ligando-se a uma associação de defesa animal, florestal ou ambiental da vossa zona.


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ACONTECEU


Miguel Relvas tirou a sua licenciatura universitária de Ciência Política e Relações Internacionais em apenas um ano, na Universidade Lusófona (Lisboa). Vá lá, vá lá. Houve quem tivesse tirado a licenciatura ao Domingo.

Não sendo ilegal, esta política de créditos de cadeiras universitárias (e da qual a Universidade Lusófona é extramamente liberal) não deixa de ser uma variante sofisticada do que foram as "Novas Oportunidades" do ensino secundário. Palavras para quê? Porque será que quando me falam de políticos portugueses, em 95% dos casos tenho que ter um vomitório à mão, para não sujar o chão ou quem me circunda?






E agora tenho que fechar o computador. É que lá me veio a vontade de vomitar outra vez.


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Respeite o Ambiente. Utilize os textos do Novo Acordo Ortográfico como papel higiénico.

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As referências aos produtos acima referidos (livros, filmes, músicas, pinturas, etc.) são incompatíveis com intuitos publicitários de carácter comercial. Reflectem, apenas, a opinião do Autor.

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Todas as fotografias do presente texto foram colhidas do Google Imagens e os vídeos do Youtube.


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Hambanine



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