VIAJANTES, AVENTUREIROS E EXPLORADORES
Anna Maria (Horwood) Falconbridge - (Bristol, Julho de 1769 - Tortola (Ilhas Virgens Britânicas), 1816 (?) - Viajante. Tendo-se casado em 1788 com o cirurgião Alexander Falconbridge, acompanhou este, por duas vezes, a Serra Leoa (1).
No decurso da primeira viagem (1790) teve oportunidade de visitar o forte de Bunce Islands (2) e a sua oposição ao esclavagismo foi aumentando de dia para dia. Apesar de viver num barco ancorado em Bunce Islands, pois o seu marido não a autorizava a contactar com os negreiros da ilha, por vezes ela acompanhou-o a terra, tudo observando e anotando. O seu marido, que fora cirurgião em navios de negreiros, foi assumindo cada vez posições mais anti-esclavagistas, vindo a tornar-se num abolicionista convicto. Um trabalho seu denominado "Accountt of the slave trade on the coast of Africa" descreve as desumanas condições em que os escravos (sobre)viviam. Foi publicado em 1788, em Londres, sob o patrocínio da "London Committee for the Abolition of the Slave Trade", sendo considerado o primeiro documento de propaganda abolicionista.
Na sua segunda viagem (1792) já o marido não ia como médico mas sim como agente comercial duma empresa britânica (Sierra Leone Company). Instalam-se na recém-fundada Freetown(3) e Anna Maria Falconbridge torna-se uma observadora priveligiada do nascimento duma cidade utópica, fundada em função de escravos libertos. Nada lhe escapa no seio da sociedade colonial como a título exemplificativo relata o destino das prostitutas londrinas que, depois de alcoolizadas, eram embarcadas à força para aquela costa africana, afim de procriarem com colonos europeus: "Então, para desgraça da minha Pátria, mais de cem mulheres infelizes foram seduzidas de Inglaterra para praticar as suas iniquidades mais brutalmente neste país horrível." Dotada duma resistência espantosa vê grande parte da população europeia ser ceifada por diversas doenças, mas ela a tudo resiste, apesar da sua compleição física ser, aparentemente, frágil. Como ela dirá mais tarde, já em Londres, "Tenho de dizer que 75% dos europeus que viajaram até à Serra Leoa, em 1792, morreram pouco tempo depois de chegarem e eu reconheço que, embora nunca tenha estado no meio de tanta doença e morte, me sentia muito melhor que em Inglaterra." Pouco tempo antes de morrer Alexander Falconbridge (de eventual ataque cardíaco) é demitido da empresa, acusado de alcoolismo e, poucas semanas após ter enviuvado, Anna Maria Falconbridge, a quem a morte do marido a libertara dum homem "irritável, desagradável e uma verdadeira carga para si", em função do seu estado de total dependência de bebidas alcoólicas, volta a casar-se, em Freetown, com Isaac duBois.
Antes de regressar a Londres percorre o rio Gâmbia e, de seguida, ruma até Cabo Verde, Açores e Jamaica. De regresso à capital britânica (Agosto de 1794) trava uma batalha com a empresa do seu defunto marido, a quem exige os dinheiros que entendia que lhe eram devidos até à morte do mesmo. Perante a recusa desta, escreve catorze cartas que publica, a partir de 1794, onde denuncia a empresa em causa. As cartas, compiladas no livro "Narrative of two voyages to the river Sierra Leone during the years 1791, 1792, 1793", retratam a primeira narrativa feminina que há conhecimento sobre a África Ocidental.
Em princípios do século XIX Anna Maria Falconbridge muda-se para as Ilhas Virgens Britânicas, onde virá a falecer (provavelmente em 1816), em Tortola.
(1) - O nome de Serra Leoa deve-se ao facto de, quem vem por mar, ao avistar terra ao longe, o formato da serra que se avista dar a impressão duma leoa. Os primeiros europeus a lá terem chegado foram os portugueses, em 1460, liderados pelo navegador Pedro Sintra. Desde os primórdios da chegada dos europeus, que a sua principal fonte de receita económica foi a escravatura.
(2) - Bunce Island (Ilha Bunce) - Era um entreposto negreiro inglês, fundado em 1670, e por onde passaram centenas de milhares de escravos vendidos para as Américas (do Norte e Sul). Localizado no rio Serra Leoa a uns vinte quilómetros da actual Freetown.
Dispunha de uma "Casa Grande", que era a habitação e escritório para o Agente Comercial da firma que explorasse o negócio, armazéns de escravos e respectivos terreiros, dormitórios, torres de vigia, um cais e um forte com dezasseis canhões. Foi encerrado, definitivamente, em 1808.
(3) - Freetown - Capital da Serra Leoa. Em 1787 a área onde hoje se situa esta cidade foi ocupada, numa tentativa inicial, por escravos libertos vindos do Jamaica, sob inspiração do abolicionista Granville Sharp. Em 1790 um entreposto comercial que funcionava naquela área foi destruído e, em 1792, fundou-se Freetown com escravos libertos e vindos do Canadá.
De seguida começaram a chegar escravos forros dos Estados Unidos e do Caribe. Dois anos mais tarde (1794) forças francesas arrasaram a cidade, o mesmo acontecendo em 1800, mas desta vez atacada por tribos locais.
Para quem quiser ler as 14 cartas consultar: http://www.marylouiseclifford.com/id20.html. Em inglês ou com tradução automática para português.
Antes de regressar a Londres percorre o rio Gâmbia e, de seguida, ruma até Cabo Verde, Açores e Jamaica. De regresso à capital britânica (Agosto de 1794) trava uma batalha com a empresa do seu defunto marido, a quem exige os dinheiros que entendia que lhe eram devidos até à morte do mesmo. Perante a recusa desta, escreve catorze cartas que publica, a partir de 1794, onde denuncia a empresa em causa. As cartas, compiladas no livro "Narrative of two voyages to the river Sierra Leone during the years 1791, 1792, 1793", retratam a primeira narrativa feminina que há conhecimento sobre a África Ocidental.
Em princípios do século XIX Anna Maria Falconbridge muda-se para as Ilhas Virgens Britânicas, onde virá a falecer (provavelmente em 1816), em Tortola.
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(1) - O nome de Serra Leoa deve-se ao facto de, quem vem por mar, ao avistar terra ao longe, o formato da serra que se avista dar a impressão duma leoa. Os primeiros europeus a lá terem chegado foram os portugueses, em 1460, liderados pelo navegador Pedro Sintra. Desde os primórdios da chegada dos europeus, que a sua principal fonte de receita económica foi a escravatura.
(2) - Bunce Island (Ilha Bunce) - Era um entreposto negreiro inglês, fundado em 1670, e por onde passaram centenas de milhares de escravos vendidos para as Américas (do Norte e Sul). Localizado no rio Serra Leoa a uns vinte quilómetros da actual Freetown.
Bunce Island
Dispunha de uma "Casa Grande", que era a habitação e escritório para o Agente Comercial da firma que explorasse o negócio, armazéns de escravos e respectivos terreiros, dormitórios, torres de vigia, um cais e um forte com dezasseis canhões. Foi encerrado, definitivamente, em 1808.
(3) - Freetown - Capital da Serra Leoa. Em 1787 a área onde hoje se situa esta cidade foi ocupada, numa tentativa inicial, por escravos libertos vindos do Jamaica, sob inspiração do abolicionista Granville Sharp. Em 1790 um entreposto comercial que funcionava naquela área foi destruído e, em 1792, fundou-se Freetown com escravos libertos e vindos do Canadá.
Free Town em 1798
De seguida começaram a chegar escravos forros dos Estados Unidos e do Caribe. Dois anos mais tarde (1794) forças francesas arrasaram a cidade, o mesmo acontecendo em 1800, mas desta vez atacada por tribos locais.
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Para quem quiser ler as 14 cartas consultar: http://www.marylouiseclifford.com/id20.html. Em inglês ou com tradução automática para português.
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HISTORIANDO MOÇAMBIQUE COLONIAL
Mataca – (1800 - 1879)
– Régulo* jáua**. Abandonando o seu núcleo familiar fundou a sua
capital em Mulembe, no interior do Niassa, dominando a sua parte
ocidental, numa área que se localizava entre os rios Rovuma, o Lugenda,
Luchilingo e Luamba. Tendo-se intitulado sultão, criou fortes raízes políticas
com chefaturas locais através de casamentos. Tinha um harém de centenas
mulheres dispersas por várias aldeias. Detinha o monopólio comercial das armas
de fogo, panos e missangas e organizou grandes caravanas de
escravos que mercadejava com os árabes e só ele tinha competência para rezar
pela chuva. Muito poderoso, governou na base do terror, estruturou o seu
exército, com cadeia de comando e estabeleceu um secretariado para o
relacionamento e comércio com o exterior. A sua capital tinha um conjunto
habitacional de cerca de mil casas, quando David Livingstone* o visitou,
em 1866. Mantinha os campos de cultivo devidamente drenados. Os seus
descendentes tornaram o seu nome num título dinástico e também num símbolo do
terror, sendo que o poder dos mesmos só foi debelado em 1912, por actuação
militar das forças da Companhia do Niassa**.
No segundo semestre de 1899 entra na campanha contra o regulado do Mataca, no Niassa, elaborando o famoso "Diário da Campanha do Mataca". Em 1900 colabora com os seus sipaios* em acções paramilitares no Alto Boror, capturando o Muene** Nagare, explorando os territórios nas zonas da Alta Maganja, Lómué, Mujema, Podo, etc., até que, em Outubro de 1902, acaba ferido num combate travado em Mulamáli. Regressando ao Boror, torna-se o segundo Director da Companhia até que, em 1914, com o deflagrar da Primeira Guerra Mundial, acaba mobilizado para França, para onde segue no ano seguinte. Em 1916 é reformado por doença, fixando-se em Marselha, onde entra nos quadros da Companhia do Boror nesta cidade, onde virá a falecer sem mais ter voltado a África.
Exploração do Niassa– O
território que forma o actual Niassa já era ancestralmente conhecido pelos
mercadores árabes e swahilis, súbditos do Sultão de Zanzibar** ou do Íman
de Mascate e que, 700 anos antes dos portugueses ali terem chegado, tinham
iniciado um intenso comércio com os povos do interior, nomeadamente na
aquisição de escravos e abadas*. No decurso do século XIX os povos do
Niassa eram compostos, essencialmente, por duas etnias: os Yao (cuja derivação
deu a palavra jáua ou ajaua) e os Nianjas (cuja derivação deu a palavra
Niassa). Os jáuas**, dos quais não existem registos anteriores a 1700, já
viviam no Niassa quando se deu a expansão dos maraves*, em finais do
século XVI, princípios do século XVII. No decurso do século XIX terão sucedido
três invasões externas ao território, levadas a cabo por outros povos
africanos, tendo a primeira delas sido efectuada por macuas (1831/1845)
e as outras por angunes** (1845/1870 e 1875/1897). Paralelamente a estas
intromissões, os europeus também se interessaram pela exploração do território
e do lago com o mesmo nome - lago Niassa** – que fica situado na zona dos
Grandes Lagos, sendo o terceiro de África, em superfície. Foi
atravessado, no primeiro quartel do século XVII, por Gaspar Bocarro* (1616);
pelo Padre jesuíta Luís Mariano, que atingiu a corte do rei marave (1624) e que
elaborou um documento descritivo, documento este que é referido no “Oriente Conquistado a Jesus Cristo pelos Padres da
Companhia de Jesus”, da autoria do Padre
Francisco de Sousa, escrito entre 1697 e1710. Também por outro jesuíta, o Padre
Manuel Godinho (1665), que ao lago denominou de “Marave” ou “Zachaf”, deu
informações escritas sobre o lago e o rio Chire tudo assente num mapa que viu,
na sua viagem da Índia para Portugal “feito
por um português que andou muitos anos pelos reinos do Monomotapa”. Na
parte ocidental do lago os prazeiros* Inácio de Meneses, João de Jesus
Maria e, posteriormente o seu filho Romão de Jesus Maria, do prazo* do
Marral, mantinham uma intensa actividade de comércio, esclavagista e não só,
naquelas zonas lacustres, tendo inclusive João de Jesus Maria fornecido a David
Livingstone*, em 1858, informes sobre o lago que este explorador aproveitou,
quando explorou esta região no ano seguinte e, vinte anos depois, a African
Exploration Found financia uma expedição ao mesmo. Ainda em meados do século
XIX caravanas de prazeiros continuavam a frequentar as margens do lago,
tais como as de Cândido da Costa Cardoso, comerciante de Tete desde 1846 e de Vitorino
Romão José da Silva**, desde 1853. Fruto disso a Sociedade de Geografia de
Lisboa, preocupada com as intromissões estrangeiras, reclama junto do governo
de Lisboa a posse do Niassa. Assim, Augusto Cardoso** explora o Lago
Niassa em 1885 e, em 1890, Eduardo Valadim** tenta estabelecer soberania
portuguesa nas terras do Mataca mas acaba chacinado, o mesmo acontecendo
a quase toda a sua expedição. Em 1898, através de António Maria Cardoso**,
expediciona-se de novo ao Niassa, tentando-se ocupações do seu interior, que se
vai cartografando e acabando por se criarem os concelhos de Metarica, Amaramba
e Lago. Em 1899 sucede-se nova expedição militar comandada pelo Major Manuel de
Sousa Machado, onde se integra Georges Stucky que, sobre a mesma,
escreveu um diário pessoal, extremamente rico em pormenores e que nos dá uma
visão subjectiva do quão difícil eram aqueles tempos. Por o mesmo diário ser de
escasso conhecimento público e de interesse histórico para o conhecimento da
penetração europeia no Niassa (só quarenta anos depois de ter sido escrito é
que saiu ao prelo em Portugal e, mesmo assim, em edição limitada) reproduz-se o
mesmo na íntegra: “Diário da
campanha do Mataca – Julho/Novembro de 1899
(autor: George Stucky) – Advertência: Este diário é uma simples relação dos
acontecimentos que se desenrolaram, como os pude e soube ver, durante a
campanha do Kouemba - Mataca. Apesar de já ter naquela época dois anos de vida
difícil e de viagens perigosas ma Maganja, nos sertões do Alto Boror, no Lomué,
eu era muito novo e não podia sentir e aguentar enfim os factos e as
vicissitudes de uma campanha tão dura como um veterano em campanhas coloniais; faltava-me
a idade mais a experiência. Não podia competir-me de fazer um relatório
completo, por falta de competência e tempo. Fui comandante dos sipaios do Boror
e, às vezes, comandante do comboio (1200 homens). Além disto fiz, próprio moto,
o levantamento total da campanha desde Milange até ao regresso a Milange. Ora
este trabalho, verdadeiro trabalho de degredado ou melhor de Beneditino, só por
si absorveria já as horas de marcha e muitas dos acampamentos. É possível que
certos leitores possam pensar que tudo o que escrevi é muito “terre à terre”,
mas é que a vida de todos os dias em campanhas africanas, fora naturalmente das
excitações dos combates, gira (é facto evidente) à roda de funções puramente
materiais, ou de banais acontecimentos. Outros acharão estas notas pouco
interessantes, sem eloquência nenhuma, sem a vividez do estilo que costumam
encontrar em tais narrativas. Mas se tal não são é porque – confesso-o com toda
a franqueza – sou desprovido do talento necessário e ainda porque os acontecimentos
de que fui testemunha não deram lugar, às tropas, de fazer proezas semelhantes
às dum Mouzinho em Gaza … por exemplo … Mas o que faltou dum lado, por falta de
adversários que se possam comparara com os zulus, foi compensado, creio, pelas
dificuldades e misérias que tivemos de sofrer, tão violentas às vezes, de
submeterem o nosso moral a uma tensão prolongada, mais difícil de sustentar que
a de umas horas de assaltos, por muito perigosas que fossem. Nada de lutas
gigantescas, nada de combates corpo a corpo memoráveis, à moda zulu ou
sudanesa, nada de “fait d´armes” u de milagres militares dignos da pena de um
Aires de Ornelas, tivemos – é facto. Mas o milagre foi o da extraordinária
resistência do soldado português, o milagre foi o da tenacidade férvida, de
esforços constantemente renovados, o milagre, enfim, foi o da dedicação
inteira, absoluta, completa dos nossos bons pretos da Zambézia. E já bastaria
isto para a eterna comemoração a campanha nos anais portugueses. Houve mais
tarde, bem o sei, nas colónias estrangeiras, em regiões desérticas ou ainda
mais cruéis que as dos lagos – campanhas muito mais duras, ais atrozes, mas
foram feitas com brancos e indígenas de elite, bem escolhidos, voluntários, já
conhecedores do clima, treinados nas privações e sofrimentos e dotados dum
espírito de sacrifício confinando ao martírio … mas nunca o foram com tropas
novas de europeus, e em tal número vindas directamente do reino, sem ter
recebido em África o baptismo necessário da experiência e de adaptação. Ao
reler estas páginas, depois de tantos anos decorridos (já lá vão uns quarenta),
tenho o sentimento inapagável de que, se houve certas fraquezas, foram elas
amplamente compensadas pelas altas virtudes de que todos, oficiais e soldados,
sipaios e humildes carregadores, tantas provas deram em prol do prestígio do
exército português e para honra imortal da sua Pátria. – Diário da expedição ao
Niassa: Do Comandante dos Sipaios da Companhia do Boror: Nomeado por despacho
de Sua Excelência o Governador de Quelimane, Sr. Soares Andrea, de 20 de Junho
(de 1899), como Comandante das forças da Companhia do Boror, deixei Namacurra
(prazo Boror) no dia 5 de Julho com: 177 sipaios, 1276 carregadores e 4
empregados, um europeu, Sr. Tomás de Bastos, com 1227 volumes de arroz. Cheguei
a Milange, sem incidentes em 15 de Julho. Faltaram-me só alguns carregadores,
estafados pela marcha forçada e tive que deixar atrás a cargo de alguns
sipaios, para não perder o arroz que traziam. 15 de Julho: À minha
chegada a Milange encontro já reunidos os sipaios do Marral (500) que não
tiveram grande caminho a fazer, e os da Maganja da Costa, comandados pelo meu
amigo, o alferes Cunha (1400). No mesmo dia, por pequenos grupos, vejo chegar
os da Companhia da Zambézia, em número de 600 aproximadamente. 16 de Julho:
O forte apresenta um aspecto que ninguém com certeza podia já ter visto desde a
sua criação … Tinha deixado Milange em Abril passado, quando vim para delimitar
o prazo Boror com o Massingir; nada havia de notável: existia apenas o forte
com o seu recinto e, um pouco afastadas, nos arredores, as palhotas e maçassas
das mulheres dos soldados indígenas: angolas na maior parte. Hoje é uma
verdadeira aldeia que eu descubro nos declives da serra Tumbini. Grandes e
belas palhotas foram edificadas em pouco tempo; umas servirão de armazéns de
víveres outras de casernas para as tropas, de cavalariças para os cavalos, e
não conto as imensas ramadas para as tropas auxiliares indígenas e carregadores
da futura expedição. É a Companhia da Zambézia que havia sido encarregue destas
instalações e bem se pode dizer que o Sr. Pinho (administrador do prazo) merece
todos os louvores no desempenho da sua missão. Recebo um telegrama do
Governador ordenando-me de seguir imediatamente com as minhas forças para
Chilomo, afim de ir receber aí os víveres para a coluna e munições. Partirei
amanhã de manhã cedo. Este pequeno passeio me fará sem dúvida algum bem e me
dará ocasião de visitar a colónia inglesa do B.C.A. (nota do Autor: BCA -
British Central África – consultar ficha), o que é sempre instrutivo. 18 de
Julho: Partimos cedo. A minha gente, não sei porquê, não parece lá muito
encantada com esta viagem … a julgar pelas reflexões que me chegam aos ouvidos
de toda a parte. Mas pouco me importa. Alto em Chindio para pernoitar. 19 de
Julho: Violenta etapa hoje, pois quero chegar a Chilomo esta noite, custe o
que custar. Chegamos pelas sete horas da tarde. Faço acampar toda a minha gente
ao pé do Ruo … e sigo eu à Residência onde sei encontrar o meu bom amigo o Sr.
Costa, que conheci como Inspector dos prazos em Quelimane. Inútil dizer que fui
recebido de braços abertos, como sabem receber os Portugueses. Não tenho visto
nada de interessante durante a viagem; apenas um sítio há despertado a minha
atenção, perto de Chindio, estação telegráfica: descobre-se dali uma linda
vista sobre o monte Chiperone e seus arredores. Pretende-se que há muitos
elefantes nas suas florestas. Pena é que não posso lá ir fazer um passeio. De
longe, o Chiperone parece uma serra importante cuja altura atinge uns 2.500
metros. Os ingleses chamam-lhe Clarendon. Amanhã serei apresentado ao Major,
comandante da expedição: Sr. Manuel de Sousa Machado, como também aos oficiais
… os meus futuros camaradas. Muito reflicto a respeito desta entrevista.
Quereria já conhecer o Major. Que tal será? Já me foi descrito, mas a minha
imaginação trota, trota e faz todas as suposições. 20 de Julho: O meu
amigo Costa acompanha-me na visita ao Major … e faz as apresentações. Recebido
muito amavelmente por todos. É um homem bastante alto, robusto, com fisionomia
rude … verdadeira cabeça de “Grognard” mas de “grognard bon enfant”. Cinquenta
anos pouco mais ou menos, cabelos e enormes bigodes grisalhos, olhos pequenos,
vivos, afundados nas suas órbitas. Nenhuma altivez: a simplicidade mesmo.
Afinal, bom tipo, muito prezado dos seus subordinados, diz-se. Passa por ser
enérgico; que o pareça, é facto, mas que o seja … veremos. O ponto importante
para nós é saber que experiência tem ele das campanhas coloniais? Ora, ninguém
soube responder-me categoricamente. Disseram-me só que conduziu uma vez, há
anos, uma coluna da Beira ao Zambeze! Passei três dias em Chilomo, muito
agradáveis, convidado de todos os lados. Sabe-se que o Chilomo inglês fica na
margem direita do Ruo e que o Chilomo português lhe faz frente do outro lado do
rio. Chilomo português reduz-se a duas casas: a Residência e a estação
telegráfica. Eis tudo. Tenho tido durante estes três dias todo o tempo de fazer
mais amplo conhecimento com todos os oficiais; a maior parte são muito novos e
fazem a sua primeira viagem em África. Muitas ilusões ainda … mas que não
durarão muito tempo. 23 de Julho: Recebo os volumes do comboio e
distribuo-os aos carregadores: o que não representa pequena tarefa … pois todos
querem apanhar naturalmente os mais fáceis, os mais leves. É preciso vigiar
tudo com este diabos, senão há imediatamente abusos escandalosos. O Chilomo
inglês é de outra maneira importante que o seu vizinho e demonstra a rapidez e
a segurança com que os ingleses sabem trabalhar em matéria de colonização. Há
esplêndidas avenidas, livres de areia e mesmo de poeira, o que se torna muito
raro algures … algumas casas bonitas, várias firmas comerciais com bastante
importância, como a do Sr. Wiese, velho amigo dos nossos directores, estabelecido
no Niassalândia já lá vão uns bons pares de anos. Deve reparar-se: a Residência
do Administrador inglês, o Post-Office; o Administrador cumula todos os
empregados administrativos, o que representa um belo sistema de economia. Há
sempre duas canhoneiras no rio, ancoradas perto da Residência; um serviço
importante de navios entre Chilomo e Chinde – sobre uma das bocas do Zambeze,
cujo porto foi descoberto há poucos anos e onde a Inglaterra obteve uma
concessão perpétua em 1891. 24 de Julho: Volto a Milange, no dia 24 e
chegada no dia 26 para almoço. Os meus carregadores algumas horas mais tarde.
Marcha rápida como se vê, pois por homens carregados, três dias são
necessários. Como soube que a coluna europeia devia seguir-me imediatamente,
acompanhada de umas nuvens de sipaios, não quis correr o risco de nos
encontrarmos e de deixar supor que os meus pretos eram vadios. 27 de Julho:
Espera-se o Major, que deve vir com a coluna; baldada espera … entretanto vou
passear nos arredores do forte. O forte, feito em 1891, é mal situado, para a
baixa da serra de Tumbini, a uns 450 metros de altura, sobre a orla dum declive
forte, obrigando as águas a juntarem-se lá. Antes da convenção luso-inglesa de
1891, o forte havia sido montado na outra margem do rio Mulosa (direita) numa
encosta bastante alta, mas o lugar foi reconhecido mais tarde como tão doentio
que foi-se obrigado de abandoná-lo. Foi edificado de novo no lugar actual, mas
creio bem que não deve ser mais salubre por isso. As mudanças de temperatura e
de pressão higrométrica são consideráveis: em menos de uma hora tenho notado
que o barómetro subia e descia mais de 10 mm. sem que haja mudanças de tempo
(trovoada ou fortes chuvas). O forte compõe-se de: um recinto em pedra de cerca
de 2,50 de altura e de dois baluartes nos ângulos NE e SO, guarnecidos com
canhões Maxim e Hotchkiss. Quatro edifícios no interior: aposentos do
comandante, estação telegráfica, caserna para as tropas e arsenal, que serve de
paiol ao mesmo tempo. Tudo pobremente construído e coberto com zinco. Deve
fazer nestes edifícios muito calor no Verão e frio bastante na estação seca. Os
quartos do comandante nem sequer têm forro e a gente já tremia com frio em
Abril … apesar de duas mantas na cama. Os indígenas do país são Matepuiris: o seu
chefe (régulo) foi preso em 1894; eles formam uma mistura de todas as raças do
sertão: Jáuas, Alolos (Boror), Lómuès, Tacuanes. A leste do forte, um pouco a
montante do caminho que desce da serra para o sul, encontram-se ainda as ruínas
duma antiga missão de São Francisco Xavier (Companhia de Jesus?); a vista desse
lugar é realmente magnífica sobre as planícies do Lugela, o alto Boror, com o
Zanga lá ao longe. Com bom tempo, se pode, até distinguir no extremo leste os
picos de Namúli, cobertos geralmente de densíssimo nevoeiro. 28 de Julho:
Até que enfim a testa da coluna aparece. O Major e demais oficiais montados
apeiam-se. Com que febril impaciência temos esperado esta chegada. Vamos agora
poder pormo-nos a caminho. Tarda-nos, sobretudo aos noviços como eu, de ver o
que é a guerra, de receber o baptismo de fogo, de conhecer novas terras, nova
gente, numa palavra: de ver, de aprender, de instruir-se. Tenho já tido, é
verdade, várias boas ocasiões – quando foi do estado de sítio em Namacurra
durante a guerra da Maganja (1897/8) e durante algumas viagens muito duras no
alto Boror para a pacificação do prazo – de aprender muita coisa sobre as
campanhas de África, pois os perigos não me faltaram, mas desta vez parece-se
uma coisa um pouco diferente – uma coisa muito maior – uma guerra verdadeira,
enfim contra dois grandes régulos: o Kouemba e o Mataca. Um no Lomué e o outro
nos confins do Niassa … ninguém sabe ao certo, pois não temos mapas alguns. Dia
de expectativa, de baldada expectativa, pois creio bem que não partiremos tão
cedo. Faltam-nos, é facto, alguns carregadores e munições. Havia eu obtido do
Major de seguir para Chirua, pois já conheço o caminho, tendo percorrido toda a
região até Mecanhelas, com os meus sipaios em Março/Abril passado, e já levantado
o itinerário quando houve contra-ordem, algumas horas mais tarde. Porquê? Não
“xe xabe” debaixo de qual influência? Ignoro-o completamente, por agora, mais
tarde talvez virá a saber-se. Chegou o Rafael Bívar, o célebre guerreiro da
Zambézia e arrendatário dos prazos Mugovo e Goma. Foi já condecorado da Torre e
Espada depois da campanha da Maganja e outras. Tive muito prazer em conhecê-lo.
Como mais ancião e mais prático em guerras cafres, não posso duvidar que terei
um bom mestre. Veio com uns 650 sipaios, todos já guerreiros antigos de fama.
Na véspera ouço dizer que partiremos na segunda-feira. Parece-me difícil, pois
não vejo nenhuma disposição para permitir-no-lo. Seremos provavelmente fixados
amanhã, o eterno amanhã da terra. 29 de Julho: Depois do almoço o Major
reuniu-nos todos em conselho, afim de estudar o plano de marcha da coluna, mapa
nas mãos. Este mapa resume-se num croquis que eu fiz da região, quando da minha
viagem no Mihanavi e no Chirua; croquis que comuniquei ao Major, com grande
espanto dos oficiais presentes. Estou mesmo intimidado ao ver todos estes olhos
apontados sobre mim quando respondo aos pedidos de esclarecimento que me estão
sendo feitos. O Governo entregou ao Major cópia dum mapa a região dos lagos,
isto é, a oeste do Chirua e do Niassa, cujos elementos foram tirados dumas
várias cartas inglesas baseadas nas viagens do O´Neil (nota do Autor: consultar
O´Neil, Henry E.) e outros, em 1890/91, mas deve-se presumir que não devem ser
lá muito exactos, por a escala ser demasiadamente resumida e a falta completa
de detalhes necessários. Há apenas neste mapa algumas coordenadas de confiança,
mas tudo o resto é … terra incógnita … fora do itinerário percorrido por
aqueles exploradores de então. Devemos, pois considerar esta região dos lagos
como uma mancha branca que deveremos explorar “comme faire se pourra”, dizem os
franceses. Este mapa em nada poderá servir para guiar a coluna. O Major fala,
discute, cita nomes a propósito dum projecto de itinerário de marcha. Havendo
exposto o seu plano, cada um é convidado a dar parte das suas ideias, de fazer
a crítica que lhe parece … mas a crítica como?, pois ninguém (excepto eu) foi
lá…? O que nos falta são guias certos. Mas em todo o caso sempre se decidiu a
organização da coluna. Esta reunião apraz-me muito e muito me interessou. Isto
prova que o Major não é como certos militares, enfatuados no seu posto, dos
seus galões, e que não admitem que os outros possam ter pensamentos diversos
dos deles. O croqui que forneci compreende só o itinerário daqui ao Chirua,
pois o resto corresponde a uma região fora da nossa direcção; ele será pois
apenas o suficiente para os primeiros dias de marcha; depois deveremos só
contar com os guias indígenas –infelizmente e quantos perigos não podemos
correr? Deveremos em primeiro lugar ir a Kouemba, mas ninguém sabe ao certo
onde fica este régulo. Sabemos, quando muito, que reside ao norte dos picos
Namúli, para NE do lado Chirua, uns 100 e tantos quilómetros. Senão arranjarmos
guias do lado de Chirua, como faremos para lá ir e como saberemos finalmente se
são as terras do Kouemba que alcançámos? Mas não antecipemos. A tarde chega,
sem saber se partiremos amanhã. Tempo detestável desde quatro dias: chuva, frio
(não se deve esquecer que nós estamos na estação invernal) e em cheio nas
serras, com a vizinhança de Milange que nos dominam do lado norte, com os seus
picos de 2.500 ou 3.000 metros. Cacimba e cacimba forte. Muitos constipados, já
(incluindo eu) muita gente adoentada, pois os pretos sofrem bastante da mudança
de clima. Mais um morto esta manhã. É o terceiro dos meus carregadores. Estes
pobres pretos não têm quase nada para cobrir-se, infelizmente, por falta de
cobertores disponíveis em Quelimane para todos. Não se pôde prever, talvez, que
a temperatura seria tão baixa nesta época? Escrevi ontem ao Director da
Companhia, como segue: “Pelo que vi nos armazéns parece-me que temos rancho
para a tropa apenas para dois meses. Se o bacalhau e a bolacha – talvez o vinho
– estão suficientes, todo resto (azeite, banha, café, açúcar, sal, etc.) não
durará muito tempo. O abastecimento destes géneros e o dos medicamentos é
absolutamente irrisório. Ora, se nós marchamos mais de três meses, como é
provável, não chegaremos ao Mataca antes de Novembro, e então a coluna
subsistirá com quê? Produtos da terra? …” 30 de Julho: Somos agora “ao
completo”. Os retardatários (landins da Maganja) chegaram à tarde. Mais de
6.000 sipaios e carregadores estão reunidos nos arredores do forte. Que
animação. Quantas passadas sobre um tão pequeno espaço. O golpe de vista é
verdadeiramente pitoresco; pena é que não tenha um aparelho fotográfico.
Infelizmente o meu está em conserto longe daqui. Teria sido o momento de ter
debaixo da mão um Kodac ou um Verascopo qualquer – mesmo que fosse mau – pois é
muito raro na vida de um homem ter ocasiões semelhantes do fotografar tais
massas de indígenas de todas as regiões da Zambézia. No primeiro plano de
frente, temos as três barracas dos soldados europeus; por detrás, perdendo-se
quase no meio da floresta, o acampamento dos sipaios e carregadores do Boror e
da Maganja, à esquerda o armazém, depósito de víveres, as cavalariças, as
palhotas dos oficiais; à direita as maçassas de numerosos sipaios; na parte
posterior, de frente aos picos de Milange, os sipaios da C.P. (nota do Autor:
Companhia da Zambézia). Recebemos as nossas munições: 40 cartuchos por homem
(sipaio); os carregadores as suas cargas (rancho – arroz). Parece-me a mim,
profano, que 40 cartucho é muito pouco. Mas que fazer? Não há mais. Teme-se que
os pretos os percam, que os gastem estupidamente nos tiroteios ou, então,
pensa-se numa nova distribuição mais tarde. Tenho já notado que não ficava
nenhum saco de arroz em depósito e receio muito que hajam mais tarde surpresas
desagradáveis num futuro muito próximo. Deus queira que me engane, mas a minha
experiência africana me ensinou que um preto pode comer, apesar das privações
que pode suportar quando for preciso, com um estoicismo extraordinário, e o
cálculo é fácil de fazer-se: um litro de arroz ou de farinha qualquer por dia.
O previsto não é o bastante. Talvez o Major conte com um fornecimento do lado
dos ingleses ou conta ele assegurar o “poço” (nota do Autor: alimento) dos
carregadores com razias em terras inimigas? Mas que grande “álea” de contar sobre
isto de forma certa? O grande problema de todas as expedições coloniais em
África foi sempre o abastecimento. Finalmente, os nossos homens recebem cinco
dias de víveres; justo o tempo de chegar à Chirua. Depois … depois a gente se
governará. Cinco dias de “poço” e 40 cartuchos. Vamos em guerra ou vamos
brincar? Quando deixei Namacurra em Fevereiro último para explorar o Alto Boror
e delimitá-lo, com Sebastião, tinha previsto a mais para cerca de cem homens,
todo o suficiente para um bom terço do tempo e ainda tinha eu a certeza de
poder encontrar “in loco” todo o necessário (no Matias) caso, naturalmente, não
me acontecesse nada de desastroso. Não posso, não pensar que o Governo terá
podido tomar as maiores precauções e que fez as reservas necessárias em
qualquer parte. Deus queira que o meu raciocínio seja justo! Mas tudo bem
reflectido, vou ainda falar com o Major, pois não estou sossegado. É preciso de
toda a Meira governar-se. Eis o que vou propor a Sua Ex.ª: reenviar
imediatamente os empregados Sebastião e Manuel ao Alto Boror, para fazer
imediatamente o recenseamento, receber imediatamente o mussoco em géneros logo
depois. Como os indígenas sabem que as tropas do “REI” estão para vir para
baixo mais tarde, farão eles todo o possível para pagar depressa. Receber o
mussoco – de preferência em farinha já pilada, de mais fácil transporte.
Transportá-la a Milange o mais cedo possível. Tão depressa pensado, tão
depressa feito. O Major aceita esta minha sugestão. Peço-lhe a requisição
necessária para as 3.000 panjas, afim de enviá-la ao Administrador do Alto
Boror, o meu velho amigo e mestre Barbosa. Escrevo logo ao Barbosa para
informá-lo desta decisão e pedir-lhe de dar as suas ordens aos muenes em
consequência, dando-lhe cópia das ordens que deixei ao Sebastião, para ele as
mandar cumprir. As 3.000 panjas deverão estar em Milange pelos primeiros dias
de Outubro. Aviso também o Sr. Eigenmann, Director da Companhia, da minha
“entente” com o Major. Creio que esta medida de simples prudência não será
inútil. Quando mesmo Sua Ex.ª tivesse a certeza de arranjar mantimentos para os
nossos carregadores no Kouemba, sem experimentar combates prolongados, teremos
nós a certeza que sucederá o mesmo no Mataca? Não seria possível que na região
do Niassa encontrássemos negreiros zanzibaritas de alta marca, que obrigariam
os régulos daí a levantarem-se contra nós e de nos dar que fazer. Estes
negreiros são geralmente de origem árabe e dotados duma certa coragem, capazes
de comandar valorosamente hordas de jáuas, de conduzi-las ao assalto, como os
landins, com o seu fanatismo muçulmano; ora isto, inevitavelmente, atrasaria
ainda a nossa campanha até à estação quente, com o risco de ficarmos entalados
por falta de víveres, os nossos fracos recursos mal chegando por um tempo ridiculamente
fraco. Somos avisados à mesa que a partida terá lugar amanhã, pelas sete horas.
Enfim. A ordem de marcha fica assim constituída: À vanguarda, os sipaios do
Boror, apoiada à direita com os sipaios do Bívar (650) e à esquerda, pelos da
Maganja, (1.400 aproximadamente), com Cunha (Alferes). À retaguarda: sipaios do
Marral, com a cavalaria. No meio: artilharia e infantaria, protegida em todas
as faces pelos sipaios. O comboio fica no meio das tropas europeias, logo
depois da segunda secção de infantaria. Algumas palavras a respeito das forças
europeias: há uma companhia de infantaria (140 soldados); uma bateria de
artilharia, com 6 peças e 60 soldados; um pelotão de cavalaria com 20 soldados;
diversas praças de intendência, de enfermaria, etc., comandados por 2 capitães
e 20 e tantos oficiais diversos. Há também 2 médicos e 1 veterinário. Ao todo:
230 praças e 25 oficiais e mais 50 angolas. O uniforme é o mesmo para todas as
armas: casaco azul-escuro, contra-epaulette negra, insígnia da arma no colarinho,
galões nas mangas, calça cinzento-azul com banda encarnada para a artilharia e
cavalaria; quépi (barretina) azul-escuro, com paramento encarnado, com número e
insígnias de fronte ou um chapéu de feltro no género bóer, muito largo com uma
roseta ao lado. Os soldados não trazem geralmente o casaco mas uma espécie de
chandail de lã muito cómodo e higiénico, com as calças de caqui ou de brim. O
comboio será composto de 2.400 homens, dos quais 320 para as munições. Nesta
cifra a Companhia do Boror fornece 1260 acompanhados por um empregado europeu,
o Bastos e um mozungo, o Romão debaixo de minhas ordens quando não estão em
marcha. A arma da infantaria é a Kropatcheck, a da cavalaria e artilharia a
carabina Mannlicher; as peças consistem em 2 Canet e Gruzon de tiro rápido. Ao
comandante fica adjunto um alferes como ajudante de ordens. No Estado-Maior, o
tenente de artilharia A.A. Terry, rapaz de alto valor quanto modesto e o
tenente Pinto da Rocha, da cavalaria. O rancho do soldado é tudo que há de mais
frugal e não creio que satisfaria soldados estrangeiros. O bacalhau com o arroz
é a base principal da comida de manhã como de tarde. É com uma comida tão
simples que o soldado português cumpre milagres ou prodígios. O dos oficiais é
um pouco melhor, mas será por pouco tempo, pois apenas alguns dias de marcha
ele tornou-se o mesmo que o dos soldados. Confesso que esta comida, com a qual
não estou acostumado, me custa muito. O azeite, sobretudo, é muito forte e me
causa nos primeiros dias náuseas insuperáveis. Mas que remédio senão
aguentar-se? O vinho é abundante e razoável, mas as tropas devem considerar
esta bebida como um presente dos deuses, pois beber vinho em campanha e tão
longe, em África, parece uma aposta. Não há pão, só biscoitos (bolacha) que o
substitui perfeitamente. Não se deve queixar e, pelo contrário, deve-se
considerar como muito felizes se nós pudéssemos estar assegurados duma tal
comida durante toda a campanha. Valha-nos Deus. 1 de Agosto: Partida às
sete horas, com temperatura muito agradável. Estou na frente. Costeamos durante
algum tempo os contra-fortes da serra Tumbini e entramos pouco depois na
planície; nada de notável. Parada às 11 horas para acampar. O grosso da coluna
chega só às 4 horas. A marcha não é fácil para os soldados europeus, ela é
mesmo penosa. O almoço consiste num pedaço de carne cozida, fria e de um
biscoito. Felizmente que eu pude arranjar alguma coisa pelas 12 horas, na
incerteza da hora duma refeição eventual. A gente consola-se na esperança dum
jantar mais substancial. Coitados. Mas o que vejo quando o toque nos chama à
“messe” (“messe” puramente imaginária já se vê): uma singular papa de arroz com
bacalhau, verdadeira massa inqualificável, que me enjoaria se fosse algures,
tão mal cheira e apresenta-se pior ainda. E eu não sou o único a estar aflito.
Todos os oficiais que estão cheios de fome, pois têm a barriga vazia desde o
café da manhã, fazem uma cara tremenda mas, finalmente, fazem boa figura contra
má fortuna. Enquanto a mim, é-me perfeitamente impossível de engolir este
petisco, por mais que eu queira, pois nada quer passar. Consigo safar-me no fim
de alguns minutos e remexendo nas minhas bagagens, entrego ao meu moleque uma
lata de conservas da reserva que guardei religiosamente da minha viagem do
Boror, para casos de grave emergência. Pude comprar também em Chilomo algumas
latas inglesas, que me serão com certeza duma grande ajuda em caso de doença.
Tenho meditado longamente, antes de adormecer neste famoso almoço/jantar; creio
mesmo que sonhei com papas e bacalhau, num inferno cafreal, onde todos os
sapendas me giravam à roda, numa sarabanda diabólica. Hum. A nossa situação
alimentar, se principiar assim, não será alegre daqui a pouco, se se pode
julgar pelas primícias já tão penosas. Os receios que expus ao Major parecem
verificar-se mais rapidamente do que eu pensava. Não iremos longe assim, com
uma tal comida. Há já bastantes praças doentes, que não poderão suportar um tal
regime. Quer-se, francamente, economizar sobre o rancho? Parece que sim, pois
temos uns bois que não se quer matar. Serão reservados para mais tarde?
Poderia, ao menos, fazer-se um pouco de sopa para os homens cansados. Uma
comida quente é sempre recebida com delícias por quem não tem apetite ou que
tem o estômago atrapalhado e na impossibilidade de engolir o prato do dia do
“maitre coq” da coluna. 2 de Agosto: Saímos às 6H30. Acampamos perto da
serra Toundo às 8H30. De manhã cedo os dois médicos foram falar ao Major para
rogá-lo de melhorar o rancho. Não sei quais as razões que eles têm invocado
para fazer mudar radicalmente o “menu”, mas desta vez, S. Exa. O cozinheiro
merece todos os louvores, pois o almoço foi excelente, comparado com o de
ontem, tão típico que era de chorar. Os doutores servem para muito, fora dos
seus talentos medicais, pois podem fazer mudar as ideias dum chefe sobre uma
determinação pouco sensata e estou certo que todos os oficiais têm tido a mesma
ideia que eu: agradecer aos nossos médicos a sua intervenção tão oportuna. 3
de Agosto: Acampados a umas 2H30 de Toundo. 4 de Agosto: Acampados
ao pé da serra Maozi. Indo um pouco à frente, encontro os oficiais encarregados
da delimitação da fronteira anglo-portuguesa. Já conhecia estes cavalheiros,
que havia encontrado em Milange em Abril passado; acolhimento encantador.
Interessei-me muito nos seus trabalhos, pois sempre tive uma verdadeira paixão
para os trabalhos topográficos. Os peritos eram os Srs. 1º Tenente da Armada
Ivens Ferraz e 2º Tenente da Armada Conde da Ponte, aos quais era adjunto o
Capitão Ferreira, se não me engano. 5 de Agosto: Aproximamo-nos do lago
Chirua; acampamento habitual. 6 de Agosto: Pudemos ver o lago entre duas
serras, logo depois de ter deixado o nosso acampamento. Vamos em direcção a NE.
Quando atingimos a planície, descobre-se o lago muito bem. Deixando a aldeia de
Boma, mudamos subitamente de país; não há mais serras altas, não mais belos
rios ou mesmo riachos com água clara, não há paisagens mais agradáveis. Tudo é
triste, sombrio, duma monotonia desesperada. Algumas colinas de rochedos,
depois uma planície imensa, coberta duma palha espessa, muito alta, e o lago,
lá ao longe, simples linha azulada à esquerda, nada mais. Paisagem pobre,
desolada. Marcha penosa, pois não há a menor sombra e o Sol morde duramente
pelas 10 horas. Além disso não há água, a não ser uma água salobra, quase
salgada, difícil de beber para os europeus. Por isso a etapa deve ser muito
grande: uns 25 quilómetros antes de chegar a encontrar uma água razoável, para
acampar. Os pobres soldados chegam estafados, numerosos doentes. 7 de Agosto:
Mais um dia de penosa e longa etapa. Sem água nas paragens. As maçadas começam
com os carregadores. Uns 200 fugiram abandonando os seus volumes. Não havia já
predito isto? E porque não se assegurou o “poço” destes pobres diabos, que
ficaram sem comida ontem e hoje? Aconselharam-nos de raziarem onde encontrassem
géneros. É fácil dizer, mas é preciso sair do acampamento, afastar-se nas
povoações distantes e correr o risco de serem corridos para não dizer mais.
Muitos não têm essa coragem e quantos já estão enfraquecidos? Como conclusão
destas fugas, o almoço tem lugar só às 2 horas. 8 de Agosto: Acampamos
perto do rio Chimoazi, em Mecanhelas. Como ficámos na proximidade do inimigo,
fazemos um sanzoro (fortificação em uso na Zambézia), feita com paus
entrelaçados, duma altura variável de 1,5 a 2 metros, conforme as facilidades
que se encontrarem. Este sanzoro é acabado às 5 horas. Poderemos nós dormir
tranquilos, pois estamos suficientemente abrigados: apesar de sumária e pouco
elevada, esta protecção é bastante prática. Pelas 6 horas chega o comboio com
2.000 carregadores; como não há bastante espaço no recinto do sanzoro, uma boa
parte deles dormirão fora do recinto. 9 de Agosto: Pela tarde chega ao
nosso conhecimento que o inimigo se aproxima. Tomamos em consequência as nossas
disposições: os canhões estão carregados, as secções de infantaria vão sendo
colocadas na sua zona de combate, os sipaios deitam-se junto ao sanzoro,
prontos a todas as eventualidades. Enquanto a mim, adormeço muito sossegadamente,
pois não creio num ataque para esta noite. Pelas 3 horas da manhã estrondeia o
toque de alerta. Acordo de sobressalto. O que será? Não deve ser o inimigo,
pois o toque não seria o que ouvi. A toda a pressa levanto-me e corro a
interrogar o primeiro oficial que encontro. Não, não há perigo por enquanto. É
unicamente para nos meter em defesa, pois as sentinelas receiam qualquer coisa.
As disposições de combate são imediatamente tomadas. Em breve toda a gente está
no seu posto e … esperamos. Esperamos até à vinda da madrugada. Vamos, não será
desta vez. E cada um de retomar as suas posições primitivas: os pretos perto
das suas fogueiras já extintas, tremendo de frio, os oficiais e praças debaixo
de suas tendas para tentar repousar. O dia é já alto e não tememos uma
surpresa. Os sipaios aventuram-se já fora do recinto e dispersam-se para ir
buscar a sua comida, onde puderem. Durante os movimentos da preparação do
assalto, houve um pequeno movimento de pânico por parte dos carregadores que,
dormindo fora, queriam naturalmente buscar abrigo no recinto e também de alguns
sipaios que já se preparavam para atirar sobre um inimigo imaginário. Mas tudo
entrou na calma pouco tempo depois do alerta. Frio durante a noite, pois somos
a uns 550 metros de altitude. Sem lume muito sofrem os pretos.
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Nota: Atendendo a ser um relatório muito extenso, subdividiu-se o mesmo, pelo que continua na próxima mensagem.
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* - Já fichado.
** - A abrir ficha.
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RECORDANDO HISTÓRIAS E LENDAS DE ÁFRICA
Yaa Asantwea, a Rainha Ashanti - (Edweso (actual Gana), entre 1840/1860 - Seychelles, 1921) - A formação do Reino ashanti remonta a 1670, altura em que Osei Tutu unificou os estados Akan e liderou uma revolta destes contra os seus dominadores de então, os Denkyra. Osei Tutu tornou-se, assim, no primeiro "asentehene" (rei, líder) ashanti e, para melhor consolidar a união do reino, para além da conquista material da libertação do jugo dos Denkyra criou também, inteligentemente, uma unidade espiritual, mística, como que mágico-religiosa que se baseou, em conluio com o seu feiticeiro Okomfo Anokye, no nascimento da lenda do "Banco Dourado".
"Banco Dourado", símbolo espiritual da nação ashanti
Pormenor do "Banco Dourado" com alguns artefactos de ouro
Assentava na lenda que, em Coomassie(1), a nova capital ashanti, um Trono Dourado descera dos céus, no meio duma tempestade de areia e que baixara, lentamente, até junto de Osei Tutu tornando-o, assim, o Rei ashanti. Todos os grandes do Reino acataram a lenda, bem como o povo e o Trono passou a ser o bem mais sagrado dos ashantis, atendendo que era o símbolo supremo da unidade espiritual.
O império ashanti cresceu com o segundo asentehene Opoku Ware (morto em 1750), que alargou as fronteiras ashantis, ao anexar territórios vizinhos. Osei Bonsu (1779/1824), o sétimo asentehene, conquista novos territórios atingindo o oceano atlântico, depois de derrotar e submeter p«os povos fante. Os fante eram os que faziam a ligação comercial dos produtos que se permutavam entre os colonos britânicos, instalados a costa e os ashantis, no interior. Ao quebrarem esse equilíbrio os ashanti conflituaram com os britânicos e, como um mal nunca vem só, também o facto de nunca terem dominado no pleno os povos que conquistavam, tornavam-se vulneráveis a guerras intestinas.
Sendo os ashantis esclavagistas e os britânicos a desenvolverem a política de combate ao mesmo fácil se tornou o aumento de conflitualidade entre estas duas forças. Criada a Colónia da Costa do Ouro britânica (2), logo no princípio do século XIX, em 1830 é estabelecida uma trégua entre estes e os ashanti, que durou cerca de trinta anos. Por volta de 1860 reacendem-se de novo os conflitos até que, em 1874, os britânicos liderados por Garnte Wolseley invadem a nação ashanti, tomam Kumasi e escolhem o asentehene que melhor entendem.
Bandeira ashanti, com o Banco Dourado no centro.
Começa a surgir a figura de Yaa Asentwea, oriunda de Esweso (uma das regiões ashantis) que era a mãe e principal conselheira do edwesohene (governante local) Nana Afrane Kuma. Tendo estalado uma guerra civil no Reino ashanti, em 1884, que teve a ver com a nomeação do novo asantehene por haver dois candidatos ao título, Yaa Asentwea, tal como o seu filho optou por um deles - Prempeth I. Após dez anos de lutas intestinas acabaram por levar esta facção ao trono (1894) e, neste mesmo ano, os britânicos quiseram instalar em Kumasi, um seu representante bem como construir um forte. Prempeh I recusou fornecer tais autorizações e, em 1896, os britânicos resolveram o problema invadindo Kumasi e os seus territóriuos adjacentes, no que foram até ajudados por ashantis que não aceitavam a liderança de Prempeth I.
Este não teve outro remédio senão aceitar todas as condições que os vencedores lhe impuseram mas, quando recusou pagar aos britânicos os custos da expedição enviada contra ele, acabou exilado para o arquipélago das Seychelles, juntamente com outros grandes, entre os quais se incluía Nana Aframe Kuma, o filho de Yaa Asentwea.
Com a liderança ashanti decapitada, pois a própria mãe de Prempeth I (e que era a Rainha-Mãe)também foi exilada, começa a sobressair na resistência surda o nome de Yaa Asentwea, uma mulher que votava aos britânicos um ódio surdo não só pela decapitação da liderança ashanti, como também por terem exilado o seu filho. A sua liderança na comunidade ashanti acaba aceite.
Em 25 de Março de 1900 o Governador britânico da Costa do Ouro, Frederik Hogson, visita Kumasi e, três dias mais tarde, ao falar perante os representantes ashantis exigiu o pagamento das expedições britãnicas, bem como lhe fosse presente o "Banco Dourado", para se sentar nele. Foi um erro revelador duma falta de tacto diplomático, ou talvez não (3). Seja como for acabou por estalar a "Revolta do Banco Dourado" (25 de Abril), e durante dois meses os britânicos ficaram cercados no forte Kumasi, aguardando a chegada de reforços que não chegavam, por as linhas do telégrafo terem sido cortadas pelos revoltosos. A 23 de Junho um grupo de britânicos conseguiu romper o cerco e atingir a costa atlântica duas semanas mais tarde, o que denunciava que a revolta ashanti estava enfranquecida.
Enviada uma força expedicionária de cerca de 1.500 homens, os britânicos libertam os seus compatriotas que estavam cercados em Kumasi e, nos três meses seguintes, combatem focos de guerrilha, pois a resistência ashanti, liderada por Yaa Asentwea, mantinha-se activa. Em princípios de Setembro desse mesmo ano de 1900, uma força britânica parte para Edweso, para acabar de vez com os poucos ashantis que ainda resistiam e prender a Rainha revoltosa.
A 30 de Setembro são derrotados, num combate sangrento, os últimos combatentes ashantis que lutavam pela sua identidade cultural. Yaa Asentwea, símbolo da resistência, consegue fugir mas, alguns dias mais tarde, caem por terra as aspirações dos últimos ashantis livres, na floresta de Ahafu, com a sua prisão e dos seus últimos líderes. Ao ser presa, cuspiu na face do oficial britânico. Era o canto do cisne ashanti.
Yaa Asentwea
Yaa Asentwea acabou deportada para as ilhas Seychelles, onde se juntou ao seu filho e à restante comunidade ashanti aí forçadamente exilada. Aí ainda viveu mais vinte anos a última líder da revolta ashanti, a Rainha que, reza lenda e (ainda hoje) a tradição oral que era "a mulher-guerreira que transportava uma espingarda e uma espada durante os combates" e que, na realidade, nunca entregou o "Banco Dourado" (4).
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(1) Coomassie - é a actual cidade de Kumasi, situada no centro da República do Gana, em pleno território ashanti. Terá sido fundada por volta de finais do século XVII.
(2) - A Costa do Ouro foi inicialmente explorada pelos portugueses que aí utilizaram uma base para o seu tráfico de escravos que comerciavam com os povos litorais. Para tal construíram o Forte de São João da Mina (1482), que era um entreposto comercial de escravos que enviam para o Brasil, principalmente.
Forte de São João da Mina
Até finais do século XV os portugueses dominaram o território que, depois passou por diversas mãos europeias até que, no princípio do século XIX os britânicos criaram ali a sua Colónia da Costa do Ouro, que viria a dar origem à actual República do Gana (06/03/1957).
(3) Há quem entenda que foi uma medida provocatória propositada, para fazer saltar a facção ashanti que se rebelava surdamente contra a presença britânica. Efectivamente os britânicos tinham, na sua posse, uma lista de nomes de rebeldes, onde se englobava o de Yaa Asentwene. Conhecedores que eram dos costumes e tradições ashantis sabiam que a exigência de se sentarem no "Banco Dourado" iria acicatar ânimos e, assim, justificarem uma nova intervenção na comunidade, já de si fraccionada duma guerra civil, destruindo os restantes focos de opositores à fixação definitiva dos britânicos.
(4) O "Banco Dourado" bem como alguns artesanatos de ouro acabaram por serem descobertos acidentalmente, em 1920, por um grupo de trabalhadores africanos, quando trabalhavam na abertura duma estrada. Os britânicos conseguiram salvar esse grupo de trabalhadores de serem executados por costume ashanti, atendendo a que aqueles tinham retirado o revestimento de ouro do banco e porque o "Banco Dourado" era sagrado demais para ser manipulado por estranhos. Em 1935, quando os britânicos autorizaram Prempeth I a regressar do exílio das Seychelles, sentou-se neste banco para ser devidamente reentronizado.
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Os rituais do feiticeiro variam consoante a gula de enriquecer do cliente. Podem ser apenas o de levar a vítima a cometer actos de desregulação social (provocar-lhe o andar nu na rua, por exemplo) até à mutilação de partes do corpo ou mesmo a sua morte. O pretendente a receber o dinheiro da vítima procura o feiticeiro especialista nesta temática, submete-se a uns rituais para comprovar o seu interesse na prossecução do feitiço e, depois o "feiticeiro", através de poderes sobrenaturais que possui, interfere com a vítima indicada pelo seu cliente.
Sessão de sika duro
Não consegui visionar o filme ganês "Sika hey" cujo guião, segundo li, se centra na história duma mulher que contrata um feiticeiro destas artes para provocar a morte do marido e do filho, o que vem a obter. Com o dinheiro da herança enriquece, mas os fantasmas dos falecidos aparecem-lhe e provocam-lhe pesadelos e remorsos que acabam por a levar ao suicídio.
O "sika duro" serve de pretexto, na vida real, para o aparecimento de gangues jovens que cometem homicídios por encomenda, sob a capa deste estúpido ritual e aterrorizando as comunidades locais. As autoridades ganesas promovem a repressão destes. Presentemente surgiu o "sika duro" via internet, em que qualquer um de nós pode contratar um feiticeiro destas "artes" e, através de poderes psíquicos ele consegue transferir dinheiro da conta da vítima para a conta do seu cliente. Mais sofisticado, pois já não envolve humilhações, mutilações ou mortes. Benefícios da tecnologia, direi eu. Sobre este tema pode-se ver, entre outros, uma reportagem de cerca de 20 minutos em http://motherboard.vice.com/2011/4/5/the-sakawa-boys-inside-the-bizarre-criminal-world-of-ghana
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LEITURAS
África Eterna - testemunhos de um tempo que não se esquece, da Oficina do Livro, Lisboa, 2012, 218 págs.
Trata-se dum repositório de testemunhos de 50 pessoas que passaram pelo Ultramar português e lá deixaram alguns anos das suas vidas. Coordenado por Catarina Coelho, Ricardo J.Rodrigues, Rita Penedos Duarte e Susana Lima, juntamente com mais oito autores, fazem uma recolha sintetizada das memórias de meia centena de pessoas que viveram nas Áfricas, com predominância para os que estiveram em Angola, alguns em Moçambique e dois testemunhos vivenciais de São Tomé e Príncipe.
Trata-se dum repositório de testemunhos de 50 pessoas que passaram pelo Ultramar português e lá deixaram alguns anos das suas vidas. Coordenado por Catarina Coelho, Ricardo J.Rodrigues, Rita Penedos Duarte e Susana Lima, juntamente com mais oito autores, fazem uma recolha sintetizada das memórias de meia centena de pessoas que viveram nas Áfricas, com predominância para os que estiveram em Angola, alguns em Moçambique e dois testemunhos vivenciais de São Tomé e Príncipe.
São histórias irrelevantes no contexto global do País, mas que assumem a sua importância no legado familiar dessas mesmas pessoas que viveram para as contar. No entanto, atendendo à sintetização das histórias, condensadas em 3 a 4 páginas e mesmo estas preenchidas com fotografias dos álbuns de família, nada de relevante se colhe deste livro, cuja leitura me entediou.
Virado para o mercado da saudade, este livro nem traz novidades nenhumas e é apenas para dizer que 12 pessoas juntaram-se, ouviram umas quantas histórias repetitivas doutras 50 e publicaram um livro. Mais nada. Quem perdeu foi o Ambiente com o abate de árvores que teve que se fazer para se arranjar o papel em que o dito livro foi imprimido.
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Marca d´África, de Luiza Bobone, das Edições Tenacitas, Coimbra, 2012, 242 págs.
Livro de memórias de Luiza Pinto Basto Bobone, uma auto-biografia centrada principalmente no tempo em que viveu em Moçambique (1957/1975) ao acompanhar o seu esposo que para lá foi colocado a desempenhar cargos de administração em empresas da Zambézia.
Jaime Nogueira Pinto refere nesse livro, sobre a Autora: " Uma mulher jovem, bonita e elegante da sociedade lisboeta saía do seu casulo para se encontrar no meio da África profunda, num África que ainda tinha febres, rios caudalosos e "indígenas". Era preciso coragem e determinação para enfrentar essa nova realidade e aí criar família, vencendo os preconceitos existentes."
Só mesmo por elegância da sua escrita e eventual amizade à Autora é que Jaime Nogueira Pinto (a quem reconheço profundidade intelectual) escreveu esta tirada que acho um pouco (para não dizer muito) surrealista. Quem lê isto fica com a sensação que estamos perante uma mulher intrépida, que enfrentou a selva, os animais ferozes, quiçá até canibais e outros perigos que tais. Tenhamos um pouco de bom senso e não insultemos a memória das mulheres que, essas sim, entraram nas florestas do desconhecimento africano quem nem furões, abriram clareiras de luz, rasgaram novas fronteiras onde a civilização entrava e obrigavam a recuar o obscurantismo. Com inúmeros erros, com preconceitos muitas vezes, destruindo legados africanos ancestrais, também, mas percussoras dum mundo novo, dum mundo inimigo da imutabilidade, que não ficava parado.
Luiza Bobone não entra neste escol feminino. Lamento, mas falo com conhecimento de causa da época em que a Autora lá esteve, do meio social em que viveu e do terreno que ela pisou. O livro em si é desenchabido, historiando o seu percurso em Portugal até que se casou, após o que ruma para Moçambique onde fica até aos alvores da independência e o seu regresso e reintegração. Pode servir (e serve) como memorial familiar, dou de barato que se leia o mesmo para ver como a nata colateral da burguesia colonial preenchia os seus tempos do nada fazerem, através dos relatos das patuscadas, dos bailes, das viagens aos territórios vizinhos, Vossa Excelência para cá, Sr. Dr. Hastings Banda para lá, as caçadas, as idas às praias, enfim...
Branqueia muito o colonialismo português, querendo até dar um toque de rebeldia como, a título exemplificativo, escreve: "A minha experiência com o apartheid é que foi terrível! Estava sempre distraidíssima e tinha uma atracção especial para escolher sempre as filas, os bancos, os elevadores para os "non white". Devia ser por falta de treino porque em Moçambique havia uma grande integração entre as duas raças, apesar de muita gente dizer o contrária." (Pág. 194). Das duas , três: ou escreveu isto por ironia ou, então, por estar completamente desfazada da realidade social moçambicana. Inclino-me para a segunda hipótese.
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A Balada do Ultramar, de Manuel Acácio, Oficina do Livro, 2009, 221 págs.
Um romance que percorre a descolonização angolana, com todas as marcas negativas da bestialidade humana a virem ao de cima e que ali imperou. História duma saga familiar de pessoas que para lá foram com ideia de aí ficarem, pessoas que se angolonizaram ao seu modo e que os ventos da História atiraram-nas de sopetão de novo para a antiga metrópole, obrigando-as a readaptarem-se de novo e a sentirem-se estranhos em terra própria com o estigma social de serem "retornados".
É um romance ligeiro, que se lê bem, com agrado, retratando factos históricos conjugados com a ficção, pois o mesmo é escrito não só por quem sabe escrever como também por quem sabe do que fala. Por isso recomendo a sua aquisição e leitura.
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POESIA
Ruy Cinatti - Ia fazer uma sintetização de Ruy Cinatti, esse poeta que tanto amou Timor. Mas, ao efectuar leituras sobre o mesmo, quer em livros quer na rede, calhou de tropeçar na leitura dum blogue que aborda este mesmo tema, duma maneira tão interessante que desisti de apresentar trabalho próprio e recomendar antes a leitura daquele texto. Trata-se do blogue "chuviscos.blogspot.pt" que, em 01/07/2012, o Autor do mesmo, José Gomes, fez um excelente trabalho resumido sobre este poeta, subordinado ao título "Ruy Cinatti, o poeta que amou Timor".
Assim, tudo o que eu pudesse escrever sobre o binómio Ruy Cinatti/Timor seria um pouco como chover no molhado, pelo que, enviando os meus cumprimentos ao Autor José Gomes (que não conheço), pelo seu trabalho, recomendo a leitura do mesmo.
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MÚSICA
Leonard Cohen - Outro dos meus cantautores favoritos é este intérprete canadiano, nascido em Montreal, em 1931. Poeta, edita o seu primeiro livro em 1956 ("Vamos comparar mitologias") a que se seguirão outros, quer de poesia quer de novelas. A sua actividade literária leva-o a ser-lhe atribuído o prémio Príncipe das Astúrias, em Oviedo, em Outubro do ano passado.
"Aleluia"
Em 1967 lança, nos Estados Unidos, o seu primeiro disco "Songs of Leonard Cohen" e, até aos dias de hoje, a sua actividade musical, quer em estúdio quer em concertos, nunca mais parou. No seu estilo musical melancólico, com timbre bem personalizado, desenvolve uma visão muito particular do mundo que o rodeia, quase que declamada pela sua voz grave. Mantém sempre um tom intimista, prudente e confidencial, mesmo quando aborda temas mais elaborados.
"Dance to the end of love"
Angustiado e enigmático, é um buscador permanente de respostas para questões espirituais que o atormentam e, após um retiro, acaba ordenado monge budista (1996). Este ano actuará em Portugal pela quarta vez, sendo o nosso um País que, desde 2008, está no seu roteiro de espectáculos.
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PORQUE SÓ HÁ UM PLANETA
Atenção: Vídeo com imagens chocantes
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Foram reprovados, no Parlamento Português, os projectos de lei apresentados pelo Bloco de Esquerda e Partido Ecologista os Verdes que tendiam a proibir o apoio institucional à realização de espectáculos que infligissem sofrimento físico, psíquico ou que provocassem a morte de animais, bem como a proibir a apresentação de espectáculos tauromáticos na televisão pública. Lamentável, este chumbo.
Que contou com os votos do PCP ao lado do PSD e CDS/PP. Os comunistas, que se dizem defensores dos valores da esquerda humanitária, de mão dada com os partidos conservadores da direita. Nem sequer votaram ao lado dos Verdes, que são o seu parceiro de coligação. Lamentável, esta demagogia.
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Hoje (13/07) vi três andorinhas a sobrevoarem a minha casa. O que tem isso de especial? Porque foi a primeira vez, este ano, que vi andorinhas. Infelizmente, começa a tornar-se lenda a referência a que "as andorinhas anunciam a Primavera". Mesmo assim, posso considerar-me um pouco feliz. Não sei se os nossos netos ainda verão andorinhas em Portugal.
João Maria Tudela
"Ao vento e às andorinhas"
Como homenagem às três andorinhas que hoje me fizeram sorrir e lembrar os meus felizes e longínquos tempos de infância (lembro-me delas nidificarem no beiral da casa dos meus pais, que hoje ainda habito) aqui reproduzo o tema "Ao vento e às andorinha" interpretado por João Maria Tudela, no festival da RTP de 1968.
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ACONTECEU
Afeganistão - Uma mulher foi executada sumariamente, depois de ter sido acusada e julgada por adultério por um tribunal talibã, que nem sequer ouviu a sua versão e a condenou à morte, tudo isto no espaço de uma hora. Foi de imediato assassinada a tiro de espingarda metralhadora, tendo o momento sido registado em telemóvel. (DN Globo, 10/07)
Momento do assassinato
Das duas uma: ou estou surdo e tenho que ir a uma consulta de otorrino tratar-me ou ainda não ouvi nenhum líder religioso muçulmano condenar mais esta violação elementar de respeito pela dignidade da condição de mulher e da vida humana. É que já cansa tanta cobardia.
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Declarações de interesse
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E agora, hambanine.
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